terça-feira, 3 de março de 2009

Livro

Calamário
O livrinho temerário

Índice:

Alma Gêmea
Fórmula para Imortalidade
Italoaustrolusogermanohispanobrasileiro
Aritmética do Amor
O Beijo “Beijo”
Ene a o tio
Fé de mais...
Infiel Idade
Desejo
Hypókrisis+ia
O Salvador, Darli
O Otário
Palavra
O Viadinho
The Song Remains The Same
Paradoxo
Solitária
Um dia de Sorte
Vândalos
Ser Semelhante
Mulher de Vida Fácil
Genuíno Brasileiro da Silva
Cotidiano
Amor Maiúsculo
Brasilidade
João? José?
Obrigado
Calamário (o poeminha temerário)

Dedicatória

Dedico este livro a todos os escritores.
Aos grandes, aos pequenos, os semi-analfabetos, os de final de semana, todos.
E junto com esta dedicatória, por mais irônico que pareça, faço um apelo:
Pelo amor de DEUS, não autografem ou façam dedicatórias em seus livros!
Ao fazer isto vocês estão condenando seus livros ao limbo, ao esquecimento na prateleira ou gaveta de alguém. Pois depois de lidos é para lá que eles vão, quando poderiam ser doados, presenteados a um amigo ou inimigo dependendo do caso.
Um livro por essência deve ser lido. Esta é a finalidade principal de um livro. Pelo menos deveria ser, além é claro de servir de peso morto, apoio para pé de mesa ou na necessidade até de papel higiênico, entre outras finalidades.
Assim como a música, a boa pelo menos, que é poesia em movimento, os livros são idéias em movimento. Idéias que muitas vezes levaram anos de espera e preparo.
O livro para quem escreve é acima de tudo um sonho realizado. Uma parte sua que muitas vezes fica escondida de todos e que finalmente é posta para fora. È a maneira que o escritor tem de proclamar para o mundo seus pontos de vista e opiniões.
Além é claro de ser uma das maneiras de poder massagear seu ego. E é isso mesmo! Todo escritor lá no fundo é um megalomaníaco, vaidoso, egoísta e prepotente, que escreve na ilusão de poder fazer com que os outros aceitem suas idéias e claro concordem com elas.
Não acredito que qualquer escritor por melhor ou pior que seja depois de muito trabalho e esforço gostaria de ver uma parte sua, seu livro, ficar largado em uma prateleira ou gaveta.
Tentem lutar com sua vaidade e não permitir que suas obras fiquem paradas, sem vida, sem serem lidas.
Eu deveria ter começado este texto de outra maneira!



“A única diferença entre a realidade e a ficção, é que a ficção tem que ser crível”. Mark Twain


Prefácio
(ou difícil)

Mark Brunkow, natural de Curitiba, Paraná, portanto curitibano. Mas não um curitibano qualquer, um típico, daqueles que realmente falam “leitê quêntê”, e que tem todos os atributos e adjetivos que cabem a um “curitiboca” clássico.
Tímido, fechado, calado, arrogante, metido, esnobe de inteligência mediana e digamos de beleza singular. Mas também é confiável, simples, sincero - até de mais – e vez ou outra simpático, não, simpático não!
Não possui emprego, o emprego é que lhe possui. Completou apenas o segundo grau e sempre em colégios públicos o que explica sua forma de escrita. Não é formado em nada, mas possui formas arredondadas.
Escreve por necessidade, necessidade de expressar seus sentimentos a um mundo que não compreende e que também não faz questão de compreendê-lo. Pelo menos é isto que fala quando lhe perguntam o por que de escrever. Acredita que desta maneira as pessoas irão achá-lo mais culto.
Mas a verdade nua e crua é outra, muito mais simples, banal mesmo.
Em uma noite típica de sexta feira, sentado em uma mesa típica de bar, força de expressão sentava na cadeira, completamente só, tomava uma cerveja enquanto olhava a televisão. Passava a novela global Terra Nostra.
Assistia desinteressadamente ao folhetim televisivo quando em um dado momento da trama os personagens de Thiago Lacerda e Jacson Antunes entram em uma peleja armados com facas. A possibilidade de ver sangue desperta aquele típico interesse mórbido em tragédias. Quando estavam prontos para se atacar o personagem de Antônio Fagundes aparece e dá um tiro, para cima, acabando com a peleja. Foi aí, ainda frustrado por não ver seu interesse mórbido satisfeito, que em sua mente conturbada teve um estalo!
- Se esta bala subiu, terá que descer. Mas onde?
Então surgiu seu primeiro conto, Paradoxo. E desde então ele continua “tentando” escrever textos que aliviem seus pensamentos atribulados.

Orozimbo Kowbrun


Alma Gêmea

Conversava com uma amiga, apesar de não acreditar que possa existir somente amizade entre homens e mulheres, afinal sempre um dos dois terá segundas intenções e neste caso eu, e ela com seus lindos olhos verdes e um leve sorriso me pergunta?
- Somos amigos há muito tempo Leo. Você me conhece melhor que ninguém. Sabe que sou romântica. Será que é tão difícil encontrar minha alma gêmea, minha cara metade. Alguém que me compreenda, que me ame e respeite como eu sou com meus defeitos e virtudes. Que tenha interesses semelhantes aos meus, alguém em quem eu possa confiar. Que me passe segurança e tranqüilidade. Alguém com quem eu possa dividir minhas angústias e sofrimentos. Que possa ficar sentado juntinho assistindo televisão. Passear de mãos dadas no domingo comendo pipoca no parque?
Confesso que tive vontade de segurá-la nos braços, chacoalhá-la e gritar:
- E eu aqui sua louca! Sou invisível?
Mas não. Como sempre fazia preferi não arriscar acabar com nossa suposta “amizade” a declarar o que sentia e ficar sem nada. É estranho como nos acomodamos facilmente e passamos a acreditar que covardia é sensatez. Que ter um amor, mesmo que platônico, é melhor do que não ter amor nenhum. Então falei:
- Existe um ditado popular que diz, quando Deus quer nos castigar Ele atende as nossas preces. E como quase tudo que vem do povo, isto é simples e correto. É sabido que pedimos sempre o que não precisamos, mas aquilo que achamos que precisamos. Você diz que quer encontrar sua alma gêmea certo?
- Sim, alguém que me complete.
- Ok. Primeiro vejamos o que é uma alma gêmea.
- Eu já disse! Alguém que faça minha vida um pouco menos sem sentido. Que queira envelhecer junto comigo. Que não se importe se eu ficar gorda ou feia. Essas coisas.
- Quanto a ficar feia você não precisa se preocupar Carol, sua mãe é uma “coroa” enxuta. Eu por exemplo não ligaria de dar uns “pega” nela. – risos.
- Leo! Seu sem vergonha. – risos - Eu vou contar para ela.
- Pelo amor de Deus Carol, não faça isso. Estou brincando!
- Eu sei. Mas então o que vem a ser uma alma gêmea para você?
- Das muitas teorias da existência das almas gêmeas a que eu mais gosto é a que diz que todas as almas no início foram criadas simples e ignorantes sem distinção de sexos, para que pudéssemos atingir ao objetivo de nossa criação, nos tornarmos seres perfeitos, a imagem e semelhança de Deus. Quando fomos enviados para a terra para iniciar nosso aprendizado fomos separados em dois. A claridade e a escuridão, o bem e o mal, yin e yang, macho e fêmea. Daí vem essa constante sensação de que nos falta algo ou alguma coisa, ou seja, a sua outra metade. Aquilo que nos tornará novamente uno, inteiro.
- É por isso que eu gosto de estar com você Leo. Apesar de algumas vezes você me deixar louca com esse seu ar de superioridade de quem sabe tudo.
- Só sei que nada sei, Carol. E o que eu não sei, invento – risos.
- Viu o que eu disse.
- Voltando ao assunto Carol. Se partirmos do princípio de que procuramos nossa outra metade, aquilo nos falta e que nos fará sermos pessoas melhores, nossa alma gêmea seria alguém que nos faria crescer. Que nos causaria mudanças. Essas mudanças causariam inquietação e com ela viria o atrito. Ela nos mostraria nossos defeitos o que nos tiraria do sério. Viveria nos questionando fazendo com que sempre analisássemos nossas atitudes e decisões. Muitas vezes nós teríamos vontade de matá-la. Nossos interesses seriam opostos, nos fazendo assim abrir nossos horizontes para novas experiências e perspectivas de vida. A última coisa que teríamos ao lado dela seria tranqüilidade e conforto. Lembre-se ela seria o que nos falta, o que nos complementa.
- Há esta bem! Então você quer que eu acredite que minha alma gêmea será alguém que me fará sofrer. Uma pessoa horrível. Que não tem nada haver comigo?
- Não foi isso que eu quis dizer. Foi você que disse que procurava sua alma gêmea, mas na verdade procurava sua imagem no espelho, ou seja, você só que invertida.
Ela fica lindamente parada durante alguns segundos pensando, depois com seu costumeiro sorriso fala.
- Não gosto mais de você Leo! Porque você foi me fazer enxergar essas coisas. Eu estava tão feliz com minha ignorância. Com minha fantasia de encontrar um príncipe encantado, mas agora sei que na verdade ele será um sapo.
- Infelizmente esse é o preço que se paga. Quanto maior o conhecimento maior o sofrimento.
- Então estamos destinados ao sofrimento, a infelicidade?
- Claro que não. É aí que entra a beleza da coisa. Quando você encontra essa outra metade você não consegue ficar longe dela. Afinal ela te completa. É uma mistura de amor e ódio, inquietação com tranqüilidade. Ao mesmo tempo em que ela te instiga a procurar novos horizontes se arriscar, te passa segurança. Você tem vontade de bater e de segurar no colo. É o eterno paradoxo. O bem e o mal, Yin e o Yang...
Então noto que enquanto falo, ela me olha profundamente, com aqueles lindos olhos verdes e com os lábios carnudos semi abertos, como se tivesse descoberto algo realmente importante que só percebeu agora, e com um sorriso matreiro diz.
- Interessante...
Fórmula para Imortalidade

“100% das pessoas morrem”.
Isto é um fato. È a incontestável condição humana. Nascemos, crescemos e morremos.
Mas outra condição humana é a inconformidade em aceitar os fatos como eles são. Por isto buscamos insaciavelmente a longevidade, a fonte da juventude, a vida eterna em vida.
Os motivos para esta busca incessante são os mais variados possíveis, entre eles a vaidade e medo da morte.
O medo da morte gera explicações para o que vai acontecer depois que deixarmos o corpo físico nas mais diversas teorias e vertentes religiosas e filosóficas. A maioria das destas vertestes dize que após a morte iremos receber as recompensas ou castigos de acordo com as nossas atitudes em vida, com pequenas variações entre as recompensas e os castigos. Entre algumas das recompensas dizem que iremos para o paraíso e ficaremos sem fazer nada numa eterna monotonia ou que lá teremos mil virgens para nosso deleite. Entre os castigos, que iremos queimar no fogo do inferno ou no mármore do capeta sempre eternamente sem apelações ou redenção.
Já a vaidade gera tratamentos de beleza, cirurgias plásticas, aplicação de botox, regimes mirabolantes para obter o corpo perfeito e com ele uma vida mais longa, já que para a morte não tem jeito mesmo.
Mas a preocupação é sempre a mesma, que iremos morrer. Quando na verdade deveríamos nos preocupar em como estamos vivendo. Como nossa preocupação é a morte não damos valor à vida, por isso ela hoje em dia vale tão pouco.
Buscamos a fórmula para imortalidade para viver em um mundo cão. E por tanto buscar acabamos conseguindo encontrá-la. Isso mesmo, a fórmula para nos tornarmos imortais esta bem debaixo de nossos narizes e a praticamos diariamente mesmo sem percebê-la.
É simples querem ver?
Toda vez que você passar por um mendigo deitado na rua vire o rosto e siga sua vida.
Toda vez que você ver um menor abandona pedindo esmola em um semáforo feche o vidro escuro de seu carro e siga embora.
Toda vez que você ver uma menina se prostituindo nas margens de uma rodovia, em quanto você vai para praia, siga em frente e não denuncie.
Toda vez que você puder tirar proveito de alguma situação não hesite, mesmo que isto prejudique aos outros, lembre-se o mundo é dos espertos.
Toda vez que você ver alguém ser assediado sexualmente ou moralmente em seu trabalho não diga nada.
Toda vez que você souber que existe um traficante em sua rua não denuncie.
Toda vez que você ver alguém ser descriminado por sua cor, raça, religião ou opção sexual deixe pra lá, não é com você.
Toda vez que você ver no jornal que os políticos desviaram verbas da saúde, educação, saneamento básico, para proveito próprio desligue a televisão e vá dormir.
Toda vez que você ouvir um marido bêbado batendo na mulher e filhos, feche a porta de casa e não se meta, pois em briga de marido e mulher não se mete a colher.
Toda vez que você se omite e deixa as coisas acontecerem sem fazer nada você morre um pouco até atingir ao estado de morto vivo e em então a tão sonhada imortalidade. Pois como todos sabemos o que já está morto, não pode morrer.


Italoaustrolusogermanohispanobrasileiro

Final de tarde primaveril em um boteco na rua XV de Novembro no centro da cidade da gente, Curitiba. Dois amigos de infância conversam.
- Fala Negão, beleza.
O outro meu constrangido.
- Fala gordo, tudo em cima.
- Que houve? Você esta meio estranho?
- Nada, não.
- Qual é negão eu te conheço desde criança, desembucha logo.
- Gordo o negócio é o seguinte, você sabe que meu filho vai nascer, você vai ser até padrinho dele, então daqui para frente não quero mais ser chamado de “negão”. Andei pesquisando na internet sobre cultura afro e quero ensinar pro meu filho que ele não é negão e sim afro-brasileiro.
- E você é norueguês por acaso? Vai morder o pai na bunda negão! – sorrindo.
O outro irritado.
- O gordo estou falando sério. Quero que meu filho conheça mais da raça negra. Que tenha orgulho das suas raízes africanas. De como fomos arrancados da mãe África e trazidos escravos para cá. Que ele possa lutar contra o racismo e o preconceito com bases sólidas. Você sabia que o Brasil tem a maior população negra fora de qualquer país da África. Segundo o IBGE, os negros e pardos representam 45% da população brasileira, ou seja, oitenta milhões de brasileiros. Isso deve significar algo, não é mesmo?
- Claro neg... é quero dizer Paulo.
- Então! Quero que meu filho conheça a história de sua descendência africana e se orgulhe disso.
- Concordo amigo, você tem toda razão. Por falar nisso seu pai é que era africano não é mesmo?
- Não gordo você conheceu meu pai sabe que ele era, que Deus o tenha, brasileiro roxo. Não lembra quando falavam mal do Brasil perto dele?
- Lembro. Pois é, então era sua avó ou seu avô que eram africanos?
- O gordo, esta me estranhando, você sabe que não. Mas sei lá alguém da minha família era. Minha tataravó ou tatatatatatatatarvô sei lá!
- Há, e por isso você é afro-brasileiro?
- Claro.
- Sabe neg... Paulo, você tem razão. Meu avô sempre contou que meu bisavô, que era italiano, conheceu minha bisavó, que era austríaca, no navio em que vinham para cá, para o Brasil. Isto por parte de pai. Por parte de minha mãe parece que tinha português, alemão e espanhol no rolo. Então somando um mais um, sobe dois, caem três... Você esta certo! De hoje me diante também não quero mais ser chamado de brasileiro e sim de Italoaustrolusogermanohispanobrasileiro.
- Oh gordo você leva tudo na brincadeira. Estou falando sério.
- Eu também! Só que desta culpa você não vai se livrar meu irmão. Você é tão brasileiro quanto eu. Não tem nada de afro, húngaro ou o diabo a quatro. Nasceu aqui, dançou. É essa “mistureba” toda. É brasileiro e ponto final.
- É claro que eu sou brasileiro gordo e me orgulho muito disso. Só acho que meu filho tem que aprender um pouco da cultura da sua raça.
- Que raça! Você é cachorro, cavalo ou vaca por acaso. A tua raça é a mesma que a minha. A raça humana. Agora se você é preto, branco, amarelo ou o diabo isso não importa.
- Não importa porque você não é negro.
- É, estou mais para um begezinho.
- O gordo a discriminação esta aí irmão. Ela existe mesmo e não é brincadeira. Só quem já passou por isso sabe.
- Nega... Paulo, eu sou gordo. Eu tenho uma leve noção do que é discriminação também. Nem por isso saio por ai procurando outros gordos para formarmos a raça gorducha. A discriminação é fruto da pobreza de espírito e financeira que gera ignorância que gera intolerância e isso só vai mudar com educação, camarada.
- Aí esta! A maioria dos pobres é negra, ou seja, afro-brasileiros. Vá a qualquer favela do Brasil e veja quantos mulatinhos você vai encontrar.
- Um monte, assim como você vai encontrar loirinho de cabelo pixaim, negrinha de olho verde, japonês mulato e aí afora. Quer ensinar para o seu filho algo, ensine a ser uma pessoa de bem, justa e honesta. Ensine a não julgar ninguém por sua cor, credo ou opção sexual. Que não importa se ele é afro, angolano, turco, mas que acima de tudo ele é um ser humano.
- Eu sei gordo, é que...
- Não tem é nada. E por falar nisso você contou para a Hertha de suas intenções afro-culturais?
- Ainda não, mas ela não vai se opor.
- Claro que não. Talvez ela queira ensinar um pouco da cultura dela também, não é mesmo?
- È...
- Vai ser interessante. Um afro-brasileiro fazendo aqueles ovinhos pintados na páscoa, como é mesmo o nome daquilo, pêssego, pestana, pescana?
- Pêssanka. È ucraniano.
- Ucraniano? Mas a Hertha é polaca não é?
- Polaca de olho verde e cabelo escorrido lá da colônia Muricy. O pai dela é polonês.
- Bom então seu filho não será afro-brasileiro e sim afro-polaco-brasileiro.- risos.
- É...
- É..., mesmo. Quer ensinar a cultura afro beleza, vai enfrente. Mas ensine que a cultura afro faz parte da cultura brasileira que é a mistura de tudo, do samba, com o maracatu, com o futebol, a capoeira, a pêssanka e aí afora. Que ele é fruto da diversidade cultural. Que ele tem que se orgulhar e trabalhar para que seu país se transforme em um lugar onde não importa a cor da sua pele ou a descendência de sua família.
- Esta certo gordo! Com um padrinho como você ele já terá muito com que pensar. Vamos tomar nossa cerveja e deixar a vida nos levar.
- Beleza. Mas de hoje em diante só o chamarei por seu nome de batismo Paulo Soto-Maior assim como você só me chamará pelo meu Orozimbo Kowbrun. – risos.


Aritmética do Amor

Toca o telefone.
- Alô?
- Oi, Arnaldo – com um tom azedo.
- Oi querida, tudo bem? – intrigado.
- Na verdade não, Arnaldo Antônio Gusmão! Precisamos conversar e sério!
Ele pensa, - Nome completo, xiiii, lá vem bobagem...
- O que foi agora querida?
- Não me venha com querida Arnaldo. Já faz nove anos que você me enrola, entre namoro e noivado, agora já chega, você decide se casa ou compra uma bicicleta!
- Casa ou compra uma bicicleta? Já vi que tem o dedo da coruja velha na história.
- Não fale assim de minha mãe Arnaldo! Mas, realmente conversei com ela e decidi dar um basta nesta nossa mal fadada história, ou você casa ou esta tudo acabado. – chorando.
- Calma querida, vamos conversar... – ouve a batida do telefone.
Sentado em sua poltrona abre uma lata de cerveja e se entrega a seus pensamentos.
Velha dos infernos mesmo, sempre se metendo. – da um gole na cerveja. Estava tudo bem, a Claudia já não falava em casamento fazia um bom tempo. Mas a jararaca tinha que meter o bedelho. Pensando bem, foi até bom. Agora posso me dedicar e dar mais atenção as minhas “pombinhas”. A Aninha da padaria, que boca. A “polaquinha” do escritório de contabilidade, que seios. A “Sandrinha” do 301, que bunda. – da um longo gole na cerveja. É, mas a Claudia eu conheci com quinze aninhos. Ela é inteligente, bonita e tem um corpaço. O problema é aquela velha louca da mãe dela. – da outro gole na latinha que esta quase vazia. É, mas já tenho trine cinco anos, esta na hora de sossegar, e no mais tem o carro que quero comprar e só com o meu salário não dá. – da o último gole na cerveja. Tenho que pensar de forma clara e racional neste assunto.
Levanta vai até a geladeira a apanha outra lata de cerveja. Senta novamente na poltrona abre a latinha, da um longo gole e volta aos seus pensamentos.
O que vou ganhar e o que vou perder casando? – da um gole na cerveja. Em relação à “mulherada” não vai mudar muita coisa, pois mesmo casado vou poder continuar dando minhas escapadas, ponto positivo. Terei roupa lavada, comida e a Claudia sempre em casa quando chegar do serviço, mais um ponto a favor. Por outro lado perderei minha liberdade de chegar à hora que quiser sem dar satisfação a ninguém, ponto negativo. Mas em compensação não terei que aturar aquela velha coruja, nem mesmo olhar para cara dela, talvez aos domingos, mas isto eu agüento. – da outro gole na cerveja. E tem é claro a questão financeira, que é aritmética, matemática pura.
Eu ganho R$ 1200,00 reais limpo por mês, a Claudia ganha R$ 1600,00 reais limpo por mês o que dá R$ 2800,00 reais. De aluguel iremos gastar uns R$ 700, 00 reais. De Água, luz e telefone mais uns R$ 300,00 reais. O meu carro novo, popular, mas zerinho, mais R$ 800,00 reais. Sobrarão R$ 1000,00 reais para gastarmos no mês. – da um longo gole na cerveja. Como eu nunca pensei nisto antes, como sou burro! – termina com o restante de cerveja da lata.
Pega o telefone apressado e liga para a noiva.
- Alô?
- Com quem gostaria de falar? – com voz de desdém por ter reconhecido o futuro genro.
- Oi dona Solange. A Claudia está?
- Não deveria, mas vou chamar.
- Alô. – com voz de quem estava chorando.
- Oi, amor! Você não me deixou falar.
- E o que você tem para me dizer Arnaldo Antônio Gusmão.
- Amor, não fala assim. Você sabe que eu te amo. Sem você eu não vivo. Parece que falta um pedaço de mim. Quando você disse que estava tudo acabado foi como se o chão sumisse de baixo de meus pés. Se você algum dia fizer isto eu acho que morro.
- Eu sei amor, mas eu não agüento mais viver longe de você. Eu quero casar ter nossa casinha, nossas coisas.
- Você esta certa amor! Pensei muito a respeito de tudo e cheguei à mesma conclusão que você. Esta na hora da gente juntar nossos trapinhos. É só você marcar a data que nós casamos. Se quiser vamos agora mesmo ao cartório.
- Arnaldo não brinca. Você esta falando sério?
- Dou minha palavra de honra. Querida, homem que é homem quando empenha sua palavra não volta atrás.
- Ai, amor que felicidade. Você me fez a mulher mais feliz do mundo!
- Eu sei amor. Então quando vai ser, amanhã?
- Calma, querido. Vamos fazer as coisas direito. Vou mandar fazer o vestido de noiva, falar com o padre, ver a decoração da igreja, mandar fazer os convites do casamento, a lista de convidados que serão muitos, as damas de hon...
- Mas querida, isto não vai ficar muito caro?
- Não se preocupe querido. É tudo uma questão matemática. Aritmética pura. Já fiz todas as contas e com o que eu ganho mais o que você ganha não teremos problemas para pagar. Talvez nos apertemos um pouco no primeiro ano de casado, mas isto não se compara a nossa felicidade, não é mesmo amor.


O Beijo “Beijo”

Como o nome já o diz não é um simples beijo como o de cumprimento ou de amizade. Falo do beijo “beijo” aquele é dado com a alma, com corpo inteiro. Aquele que faz as pernas tremerem, o coração disparar, a respiração acelerar, você começa a suar, o seu estomago começa a dar voltas, é quase como se você estivesse tendo um ataque ou coisa parecida. E é assim mesmo, quem já deu um beijo “beijo” de verdade, sabe sem medo de parecer ridículo ou exagerado do que estou falando.
O beijo simples já é algo fantástico, é tão poderoso que pode significar desde de um ato de estrema traição até a prova cabal do amor infinito. O poeta já dizia:
“O amor é infinito, mas cabe no breve espaço de um beijo”.
O ser humano tem necessidade de beijar. Na infância tudo que se dá para um bebê ele logo coloca em sua boca. Para a grande maioria dos seres humanos racionais, na minha opinião pessoas de pouca fé, céticos, é um comportamento perfeitamente natural e explicável. É a tal fase oral da infância. Mas para alguém como eu é a prova concreta de que desde cedo treinamos para poder beijar.
Existem várias maneiras de se beijar, com a boca aberta, com a boca fechada, apenas com os lábios, com a ponta do nariz, usando a língua, com os cílios ou como a imaginação permitir. Não entrarei no mérito do que diz respeito aos lugares para se beijar, pois aí extrapolarei até mesmo os limites da imaginação. Se é que existem limites para imaginação.
Como sei que o beijo é algo muito particular e que muda para cada tipo de indivíduo não discutirei o que é um beijo bom ou um beijo ruim. O que tentarei fazer é dar algumas dicas de como é o beijo “beijo” para mim.
Primeiro o motivo: Não existe motivo apenas à vontade.
Segundo o lugar: Independe, pois qualquer lugar é um bom lugar para se demonstrar o quanto se gosta de alguém.
E terceiro a pessoa: Este é um ponto importantíssimo para o sucesso do beijo “beijo”. Deve-se fazer com que a pessoa que esta com você naquele momento sinta-se a pessoa mais importante do mundo. Não importa se você vai ficar com ela o resto de sua vida ou se é apenas um caso passageiro. O importante é que naquele momento, naquele instante ela seja o amor de sua vida a única pessoa na face da terra que realmente importa.
Depois para se dar um beijo “beijo” verdadeiro deve se seguir alguns passos simples.
1° passo: A aproximação.
O beijo “beijo” não começa na boca. Não, seria extremamente comum se isto ocorresse. Ele começa muito antes já no olhar. Você tem que transmitir no olhar todo seu desejo de beijar e de ser beijado.
2° passo: As mãos.
Pegue uma das mãos da pessoa a ser beijada e encoste em seu coração para que ela possa sentir seus batimentos, na outra suavemente passe o nariz e os lábios sobre as costas da mão até encontrar os dedos. Em seguida vire a mão e de um breve beijo no centro da palma da mão.
3° passo: O contato.
Puxe a pessoa para perto e encoste suavemente a ponta do nariz e os lábios na junção do ombro com o pescoço e comece a subir lentamente com um leve toque passando pela orelha seguindo a bochecha até encontrar os lábios e o nariz. Importante, durante o trajeto não deve se beijar, mas apenas deixar que a outra pessoa sinta sua respiração e seu toque.
4° e último passo: O beijo “beijo”.
Nunca vá direto ao beijo em si. Assim como em uma ópera ou grande obra deve existir uma introdução preparando para o que vem a seguir. Comece beijando sem usar a língua apenas com os lábios dando suaves beijos no lábio inferior depois no superior. Só então comece a colocar lentamente a língua. Lembre-se que o beijo “beijo” deve ser dado como um todo, então não esqueça das mãos que podem estar apertando firme a cintura, deslizando suavemente pelas costas ou onde você achar mais apropriado.
Não tenho a arrogância ou pretensão de com isso ensinar ninguém a beijar ou mesmo padronizar um dos mais belos atos de carinho e afeto da humanidade. O beijo “beijo” assim como nós, tem vida própria por isto esta aberto a livres interpretações, melhoramentos ou modificações. Mesmo porque cada beijo é uma experiência ímpar e única e nada se compara a pratica. E a melhor maneira de desenvolvê-lo é praticando então o que estamos esperando.


Ene a o tio

Não sou bonito, não sou alto, não sou magro, não tenho olhos azuis, não tenho cabelo liso, não tenho religião, não gosto do Lula, não gosto do Serra, não gosto do Ciro, não gosto do Garotinho mas gosto das garotinhas. Não tenho mais vinte anos, mas também não cheguei ainda aos trinta. Não tenho a vida inteira pela frente. Não tenho mais minha virgindade nem minha ingenuidade, tanto a sexual como a espiritual. Não sou formado, não passei no vestibular o que não é assim uma coisa tão ruim, afinal não sei o que quero fazer de minha vida. Não consegui ser poeta, não consigo enxergar o mundo com sensibilidade ou sutileza. Não sou músico, não tenho talento. Não sou escritor, não sou bom com a língua portuguesa ou qualquer outra língua, na verdade acredito até que tenho uma língua morta. Não sou feliz, mas também não sou triste, apenas sou. Não gosto de meu trabalho, mas não quero ficar desempregado. Não gosto do calor, mas detesto o frio. Não sou inteligente, mas não me considero burro. Não sou o melhor em nada nem ruim em tudo. Não vivo como eu quero, mas não permito que a vida dite meu caminho. Não tenho filhos, pelo menos que eu saiba. Não sou bom de cama. Não broxei, “isso nunca me aconteceu”. Não quero ser comum, igual, semelhante a ninguém, mas não quero ser visto como um estranho, esquisito, diferente a todos. Não sou carioca, mas sou caricato. Não tenho carro. Não tenho casa. Não tenho medo de ser corajoso, mas não tenho coragem para demonstrar meus medos. Não sou vegetariano. Não faço três refeições ao dia. Não lavo as mãos depois de ir ao banheiro. Não escovo os dentes após cada refeição. Não respeito dias santos. Não conheço o mundo. Não viajo. Não jogo futebol. Não faço regime. Não confio no ser humano. Não sou soteropolitano, pois não sou baiano. Não assisto ratinho. Não pratico esportes. Não fumo cigarro. Não acredito em verdades absolutas, mas em mentiras bem contadas. Não bebo conhaque, só cerveja. Não compreendo a fome, a injustiça, a miséria, a hipocrisia, o analfabetismo, a matemática. Não quero ser marginal muito menos formal. Não vou a velórios, missas, palestras, comícios, aniversários, casamentos, batizados, mas vou na zona. Não aprendo com facilidade, mas não esqueço facilmente. Não fujo as minhas responsabilidades, pois não assumo nenhuma. Não sei qual ou quando disse minha primeira palavra, mas provavelmente tenha sido não. Não piso na grama. Não falo palavrão. Não uso drogas. Não como de boca aberta nem antes de dormir. Não faço sexo sem camisinha. Não faço xixi na água da piscina. Não corro pelado pela rua. Não arroto em público. Não peido na frente, ou atrás, de estranhos. Não minto, muito. Não sei quantas vezes usei a palavra não nesse texto e talvez seja por isso que não sei como terminá-lo. Por isso não usarei minhas palavras para isso. Usarei Fernando Pessoa que por sinal não era brasileiro, mas português. Não sei também quando ele as escreveu, mas não tenho a menor dúvida de que são tão atuais como se ele as tivesse escrito hoje.

“Na vida não conheci ninguém que tenha levado porrada, todos são semideuses”.
Fernando Pessoa


Fé de mais...

Como fazia toda sexta feira ele caminha em direção ao terminal de ônibus metropolitano da grande Curitiba. Eram quase dezessete horas, horário em que o movimento começa a aumentar com as pessoas apressadas para chegar em casa. Seguindo a regra esta vestindo camisa branca, gravata azul marinho e terno cinza, muito gel no cabelo curto penteado meticulosamente do lado direito para o lado esquerdo de sua cabeça, com cada foi em seu devido lugar deixando a mostra grandes orelhas. Fisionomia muito séria passando muita tranqüilidade, respeito e acima de tudo uma confiança em si anormal, beirando mesmo a arrogância. Não tinha mais do que vinte e cinco anos. Com sua mão esquerda vem arrastando uma enorme mala preta, presa a rodinhas que fazem um ruído enorme anunciando assim sua chegada e em baixo do braço direito a Bíblia Sagrada.
Ritualisticamente posicionasse ao centro do terminal. De dentro da mala retira uma caixa de som amplificada ligada a uma bateria de carro. Conecta a ela um microfone e com o dedo indicador da três batidas na ponta e diz:
- Testando, um, dois, três...
Alguns curiosos já vão parando e observando enquanto ele vai dando os últimos ajuste no som, ajeitando uma urna, como as de votação só que em plástico transparente, que serve para receber os donativos e montando uma pequena plataforma que retirou também da mala que utiliza para poder ficar mais alto do que os ouvintes.
Agora já em pé na plataforma com o microfone em uma das mãos e a Bíblia aberta na outra fala com um tom de voz elevado e muito firme inspirando muita confiança:
- Aleluia irmãos.
Alguns transeuntes menos atentos se assustam com o barulho assim como outros que estavam mais afastados vão se aproximando para ver o que acontecia. Em poucos minutos ele esta completamente rodeado, como uma cadela no cio. Como de praxe segue aos gritos declamando versículos, passagens, parábolas, Mateus, Lucas, Pedro, etc, etc, etc. E sempre que percebe algum tipo de desinteresse ou distração das pessoas ao seu redor não hesita em gritar com plenos pulmões:
- Aleluia irmãos.
O que era prontamente respondido pelos ouvintes em uníssono.
- Aleluia.
Alguns metros dali parada diante de um mural, onde as agências de emprego colam seus cartazes oferecendo vagas, esta dona Matilde das Dores absorta olhando para aquilo como quem olha para uma obra de arte, pois como é analfabeta somente as cores lhe chamam a atenção. Mas como todo bom filho desta nossa ingrata terra, não passa aperto e logo arruma uma mocinha para ler os anúncios para ela. Seguindo as orientações da robusta senhora a menina com certa dificuldade começa:
- “Auchiliar” de cozinha. Salário mínimo, vale transporte, 1° grau “compreto”.
E dona Matilde resignada:
- Esse não dá minha filha, lê aquele fazendo o “favô”.
- “Auchiliar” de serviços gerais. Masculino, maior com experiência de 2 anos.
Dona Matilde mostrando um sorriso desdentado diz:
- “Vixe” filha, só se eu virá “homi”.
E assim a menina com seus dezessete anos, corpo franzino contrastando com sua saliente barriga de gestante, segue lendo os anúncios. Enquanto a menina lia o último anúncio abatesse em dona Matilde um desanimo tremendo quase um desespero, pois sabia que voltaria mais um dia para casa sem emprego, dinheiro, dignidade e praticamente sem esperança. Com os olhos marejados agradece a menina e caminha em direção ao centro do terminal carregando consigo e fazendo justiça ao seu nome, todas as dores de uma vida humilde ou melhor humilhante.
Como uma águia a avistar sua presa ele nota aquela senhora desiludia caminhando em sua direção e raciocinando extremamente rápido percebe a oportunidade. Antes mesmo que dona Matilde pudesse compreender o que acontecia estava cercada pelos braços do rapaz que falava complacente mas muito decidido para que todos pudessem ouvir:
- Aleluia, irmãos. Temos aqui uma irmã desiludida, sem esperança, um prato cheio para o demônio que fica nos espreitando só esperando nos abatermos e assim nos dominar. Não desanime, fé irmã, pois nosso senhor Jesus Cristo filho de Deus todo poderoso, onipotente, onisciente, senhor do céu e da terra, AMA VOCÊ. Aleluia irmãos.
A senhora vendo toda aquela gente ao seu redor olhando para ela com uma mistura de curiosidade e pena, aquele rapaz gritando em seu ouvido mais o fato de estar cansada por procurar emprego o dia inteiro além das dificuldades de uma vida dura, fica extremamente nervosa e desata em um choro compulsivo que é prontamente amparado pelo rapaz que a aninha em seu braço falando carinhosamente:
- Aleluia irmãos. Não tenha vergonha irmã o choro faz bem a alma. Foi Deus nosso senhor que nos presenteou com as lágrimas para que possamos aliviar nossas tristezas e frustrações. Isso mesmo, chore. Chore muito. Desabafe ponha tudo para fora. Aleluia irmãos.
Algumas mulheres ao redor vendo aquela senhora chorando copiosamente se compadecem e começam a chorar também e em um gesto quase que impulsivo a abraçam e em meio aos soluços dizem:
- Aleluia, aleluia.
Mal conseguindo controlar a satisfação de ver seu plano dando certo, o rapaz incita ainda mais as pessoas com palavras fortes, frases feitas e muitos, mas muitos, gritos de:
- Aleluia irmãos, aleluia.
Agora muito mais calma depois do desabafo dona Matilde sente-se completamente renovada como que de cima de seus ombros tivessem retirado o mundo. Percebeu que havia pessoas que se importavam com o que ela sentia. Pessoas que ela nunca havia visto, completos estranhos que entendiam sua dor e desespero. Pessoas assim como ela que conheciam o sofrimento, o trabalho duro ou pior a falta do trabalho, a humilhação e as dificuldades da vida. Essa surpreendente descoberta encheu seu coração de esperança. Sentia que poderia vencer qualquer desafio e nunca mais ficaria desamparada, pois sempre existiriam pessoas boas prontas a lhe estender a mão.
O rapaz percebendo a senhora com ânimo renovado grita entusiasticamente:
- Aleluia. Diante de nós uma prova da bondade de Deus, pai, nosso senhor. Com sua infinita sabedoria e misericórdia renovou o ânimo dessa irmã, afastando o demônio que a espreitava como cobra peçonhenta.
Dona Matilde quase que em estado de êxtase segurando a mão do rapaz grita em meio a multidão:
- Aleluia. Obrigada meu Deus. Aleluia.
Antes de ir embora agora carregando consigo um santinho que ganhou do rapaz para que usasse toda vez que se sentisse desamparada, dona Matilde tira da bolsa seus últimos dez reais e sem hesitar nem mesmo por um segundo, coloca dentro da pequena urna dos donativos que estava quase cheia. Afinal de contas o dinheiro não era nada comparado ao bem estar e paz de espírito que ela experimentava.
Como sempre cerca de duas horas depois de chegar ele começa a desmontar seus equipamentos de trabalho. Primeiro confere os donativos, quase sessenta reais. Depois guarda a caixa de som, o microfone, a urna agora vazia e a plataforma dentro da mala. As pessoas como sempre acontecia já haviam seguido seus caminhos e não mais se importavam com o rapaz. Quando se preparava para ir embora sente que o bolso de seu terno esta tremendo. Com toda calma do mundo retira de dentro dele um pequeno aparelho celular menor do que a palma de sua mão e tão fino quanto a mais avançada tecnologia permite.
- Alô.
- Marcelo?
- Sim, quem é?
- É o Edir. E aí rapaz tudo em cima?
- Oh, Edir tudo na maior, ou como diria meu tio, do jeito que o diabo gosta.
- Que bom. Então tudo certo pra hoje à noite?
- Claro. Você acha que eu perderia a inauguração da “Boite Tropicaliente” onde estão as garotas mais belas da capital?
- Que bom. É que eu achei que você estava sem dinheiro?
- O dinheiro nunca falta para quem tem fé, meu amigo. Não são apenas montanhas que a fé movimenta. Movimenta também a máquina que não pode parar.
- Há! Então o novo “bico” que você falou realmente esta dando dinheiro?
- Como nunca meu amigo, como nunca! Mas é isso aí. Nos encontramos lá. Tchau.
- Ok. Tchau.
Com a mesma confiança que chegou segue arrastando com a mão esquerda a grande mala preta e em baixo do braço direito a Bíblia Sagrada.
Infiel Idade

- Para com isso João. Você falando em amor! Vive traindo a Joana a torto e direito. A coitada tem que passar de cabeça baixa perto de fios de alta tensão se não fica presa! Que amor é esse?
- Serginho, Serginho! Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A Jô é diferente. Ela é a minha esposa, mãe do meu filho e nunca haverá outra. – grita olhando para o dono do bar. Alfredo, o Alfredo traz mais uma gelada pra gente e manda uma porção de “porrápida” frita que a tua polenta demora muito.
- Ta bom João!
- Não Serginho, sério. As demais são só diversão, casos sem importância.
- Sem importância porque não é na tua testa que esta o enfeite. Queria ver se a Jô é que tivesse uns casos sem importância, se você ia gostar.
- Vira essa boca pra lá Serginho. – dando três pequenos socos na mesa – A Jô é mulher direita, de família. Casou virgem. E você não sabe como é um casamento. No mais existe mulher pra casar e mulher pra “ficar”. Acorda pra vida meu amigo, estamos no século vinte e um. Direitos iguais, liberdade de expressão, sexual e o diabo a quatro. A mulherada não se contenta mais em queimar sutiã, elas querem queimar é a “rosca” mesmo. Antigamente pra você conseguir dar “umazinha” você tinha que namorar, conhecer os pais, as tias, o cachorro, o carteiro da rua dela, o padre da paróquia. Hoje não. Ta tudo liberado, quem não quer nada sério são elas. O que nós temos que fazer é relaxar e gozar literalmente. E digo mais quando elas vêem um atestado de otário no dedo da tua mão direita é ai que elas ficam loucas.
- Não generaliza João. Concordo que hoje em dia ta meio largado, que a moda é ser “tribalista”, eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também. Mas isso é muito pequeno, vazio mesmo. Chega uma hora que enche o saco, cara! Recuso-me a acreditar que assim as pessoas são mais felizes.
- Felizes? Que felizes Serginho. Felicidade é um estado de espírito. Ninguém é feliz ou triste. Nós apenas somos. Vivemos nossas vidinhas da melhor maneira possível. Desviando de umas pedras aqui, engolindo uns sapos ali e assim caminha a humanidade, pequeno gafanhoto.
- Eu sei disso. Só que não entendo alguém que diz amar outra pessoa, mas sempre que pode mete um par de “guampa” na cabeça dela. Acho, acho não, tenho certeza que o gostar envolve muito mais que apenas ficar junto ou dar “umazinha” de vez em quando. Se for só isso, paga uma puta e pronto. Não tem vínculo ou envolvimento algum e ainda por cima pega uma profissional no assunto. Acredito que gostar de alguém é se entregar por inteiro, é dividir seus sonhos, suas alegrias e tristezas. É poder ficar sentado um ao lado do outro sem falar nada e mesmo assim saber exatamente o que o outro está pensando. É acordar pensando nessa pessoa e quando isso acontece você sente um frio na barriga. É levantar sem se importar que vai ter que trabalhar oito horas em um emprego que você detesta só por saber que mais tarde vai encontrar quem você gosta. E por mais estanho que possa parecer pra você, a base pra este tipo de relacionamento tem que ser o respeito e a confiança.
- Relacionamento? Respeito? Confiança? Que viadage é essa? Que porcarias de revistas você anda lendo? Capricho, Claudia ou anda assistindo Ana Maria Braga mesmo? – risos.
- Porra João! Eu posso estar cozido, mas sei o que estou falando. Você sabe que é verdade. E no mais existem boas matérias na TITITI. – risos.
- Eu sei bicho. To brincado. Tudo isso que você falou é maravilhoso, mas não é amor. É paixão da brava, e dura no máximo, se você tiver sorte, um ano. O amor é mais complicado amigo, e pode durar uma vida inteira. Envolve rotina, mau humor, conhecer os defeitos um do outro e ter que aceitar. É agüentar as TPM’s dela, o choro do neném ás três horas da madrugada e no outro dia ter que levantar cedo e ir trabalhar. É você a fim de dar uma e ela com “dor de cabeça” ou ela a fim e você com a cabeça que é só conta e não consegue dar no coro. É aturar a família dela dando “pitaco” na tua vida, a tua família reclamando dela e da família dela. É a falta de grana. Amor é a soma de tudo isso mais a prestação do carro mais o aluguel mais ás compras do mês e mesmo assim ainda querer ficar junto.
- Nossa João! Ouvindo você falar é preferível ir pro inferno do que se casar. – falando com Alferdo – O gaúcho, traz mais uma gelada.
- Ir pro inferno? Mas você já foi lá em casa! – sorrindo. – Agora é sério, pergunte pra quem você quiser. Taí o Alfredo galdério - que trazia a cerveja - que não me deixa mentir sozinho, casamento é ou não é um tormento?
- Ba! Guri. Eu que o diga! Uma vez fui numa velha batuqueira lá em Porto e disse:
- Vó Toinha jogaram uma praga em mim que eu não consigo me livrar.
- Izi fio, diz pra vó exatamente as “palavra” de quem jogou o “fetiço” pra mó da vó pode “dismanchá”.
- O safado disse: Vos declaro marido e mulher!! – rindo muito.
- Há vá, vá Alfredo. Traz logo a polenta que nós estamos com fome e vê se capricha na porção. Serginho um dia você vai arranjar uma dona encrenca ai eu verei todas suas convicções caírem uma a uma. Escreve o que eu estou dizendo.
- Pois escrevo com assinatura reconhecida em cartório e tudo. Minhas convicções são a única coisa que tenho e delas não abro mão.
- Ta bom! A vida não é mãe piá. É madrasta.
- Porra John, você ta muito pessimista. A vida não é esse mar de merda que você ta pintado.
- É que não agüento mais Serginho. To no limite cara, e não é só o do banco, o do meu saco mesmo. Chego em casa todo dia e é briga, reclamação, aporrinhação. Se vou ler um livro ou escutar música ela reclama que não dou atenção pra ela. Se eu dou atenção ela diz que tenho que dar um pouco de espaço, que estou sufocando ela. Ou fica falando que se mata tendo que trabalhar e ainda cuidar da casa, do neném, que ela não tem tempo pra ler um livro ou escutar música vai entender esta raça! – porra Alfredo cadê a polenta?
- Não reclama João. Se não fosse a Jô hoje você provavelmente, estaria caído em uma valeta qualquer, bêbado com um cachorro lambendo tua boca. – risos. E isso deve ser castigo pela quantidade de chifres que você coloca na cabeça da coitada.
- Você fala isso porque nunca casou. Nem namorar sério você namora. Sempre com a desculpa de estar procurando a mulher certa, a alma gêmea. Cuidado bicho, Cazuza já dizia quem não sabe amar fica procurando alguém que caiba em seu sonho.
- Realmente João o tipo de mulher que procuro já não existe mais. A monogamia esta fora de moda e no mais esse teu tipo de amor eu dispenso. Prefiro passar a vida só, a viver me enganando. Sofrendo e fazendo outros sofrerem porque não tenho coragem de assumir a responsabilidade por meus atos.
- A culpa por eu estar nesta situação é sua. Se você não tivesse visto a Jô naquela festa eu não teria conhecido ela e hoje estaria solteiro.
- Bem feito por chegar na mulher que os amigos vêem primeiro. – Oh, polentinha demorada em Alfredo. – gritando para o dono do bar.
- Que é isso Serginho, você sabe que eu te considero como um irmão e agradeço todos os dias a Deus por colocar uma santa com a Jô na minha vida. Assumo total responsabilidade por meus atos, mas confesso que ultimamente ta complicado agüentar.
- Deve ser a tal da crise dos sete anos. Vai passar.
- Crise dos sete anos! Realmente você anda lendo muito a TITITI – risos.
- Agora sério John, se ta tão ruim assim porque você não larga mão dessa porra toda? Você para de sofrer, a Jô também, fica todo mundo feliz e pronto.
- Não é tão fácil assim “piá”.
- Não João, eu sei que não. A verdade é que você se ilude com a vida de solteiro. Não ter que dar satisfação pra ninguém, não ter ninguém perguntando aonde você vai, que horas vai voltar, se você esta bem, se ta vivo, se esta chateado, triste ou como foi seu dia. Os casados supervalorizam a vida de solteiro só destacando o lado bom. A festas, as baladas, a mulherada. Só que chega uma hora que cansa. Sempre com aquelas meninas burras com peitões cheios e cabeças vazias. Esquecem como é injuriante não ter ninguém. Sair de casa e saber que quando voltar tudo, absolutamente tudo esta no mesmo lugar. Acordar sozinho, trabalhar o dia inteiro chegar em casa e não ter ninguém para conversar mesmo que para brigar. Alguém pra dar um pouco de vida pra essa vida monótona que nós solteiros temos. Alguém para nos tornar menos sozinhos, um pouco menos inúteis.
- Ok, Serginho. Pode parar com a choradeira. Já entendi aonde você quer chegar. Ninguém nunca esta satisfeito com nada. Como diz meu tio, casamento é que nem gafieira quem esta dentro quer sair e quem esta fora quer entrar.
- João podemos ficar discutindo a noite inteira, mas como dizia o grande Paulo Leminsk:
“Se o amor é troca
ou entrega louca
discutem os sábios,
entre os pequenos
e o grandes lábios.”
- É isso ai Serginho, chega de reclamação. São onze horas, a Jô ta na casa da mãe, provavelmente metendo o pau em mim, e só volta amanhã para casa. Estou mais solto que pinto em cueca samba canção.
- Porque será que chamam de cueca e não de “pintoeca”?- risos.
- Cala a boca Serginho que você já ta cozido. Vamos dar um role pela “night” curitibana.
- Beleza. Até Alfredo, pendura a nossa conta aí.
- Ok, vão pela sombra...
Alguns minutos depois.
- Mas Bá! E a polenta!
Desejo

Mais um dia que vou trabalhar menos miserável
Pois sei que irei vê-la
Mesmo que por um instante
Mágico instante

E então que chega a hora
Lá esta ela, como sempre bela
Graciosamente parada, imaculada
Contornos e curvas perfeitas
Como que feitos pelas mãos do artesão
Nem um miligrama de gordura a mais ou a menos
Simplesmente, a perfeição

A desejo tão profundamente que chego a salivar
Quase mesmo a me desesperar
Desejo que não consigo mais segurar
Mas sei que nunca vou sequer poder tocá-la

E ela lá, a me torturar, a me observar
Estática, com aquela deliciosa cor rosada, suada
Sinto mesmo que poderia devorá-la ali
Diante de todos, como um animal voraz

Mas me contenho,
Sou um animal, mas racional
Resignado subo em minha bicicleta
Aprecio durante mais alguns segundos meu objeto de desejo
E então deixo novamente a vitrine do açougue Nossa Senhora de Lurdes.



Hypókrisis+ia

Tarde de inverno. Estou novamente em meu quarto muito bem agasalhado protegido do frio e da chuva, que insiste em cair a horas, sentado diante de meu computador que custou cerca mil e quinhentos reais, o que equivale a quarenta e cinco cestas básicas em média, comendo um sanduíche de queijo e presunto e tomando chocolate quente.
Como de costume viajo durante algum tempo pela internet e depois me preparo para escrever mais um texto que exprima toda minha revolta e indignação em relação à fome, o analfabetismo, a pobreza, as desigualdades sociais que permitem que milhões de brasileiros vivam abaixo da linha da miséria. Ou sobre o descaso dos governantes, o voto consciente, a discriminação racial, sexual ou religiosa, sobre os menores abandonados, os desabrigados que são meus temas preferidos.
Tudo pronto, a janela fechada, o quarto aquecido, e eu já com a barriguinha cheia. Quando fui teclar a primeira letra tive um estalo, uma revelação divina ou demoníaca, sei lá! Surgiu em minha mente uma pergunta cretina:
- O que é que faço para melhorar isso?
A resposta foi esclarecedora e obvia.
- Absolutamente nada.
Percebi que posso até me revoltar quando vejo ou ouço uma notícia de discriminação ou violência na teve ou jornal, falando palavrões e tal, mas então lembro que tenho que pagar a conta da luz ou do aluguel e volto a cuidar de minha vida. Ou melhor, meu umbigo.
A verdade é que estou pouco me lixando para a fome, as desigualdades, a miséria e todas essas desgraças que estão por aí. Sei que não vou levantar a bunda da cadeira e realmente fazer alguma coisa. Afinal de contas não é problema meu. Quem tem que cuidar da miséria são os políticos. Da violência é a polícia. Não é assim que funciona?
É muito fácil se indignar com as desgraças sociais e morais de nosso país ou do mundo. Ou ainda defender as idéias do marxismo, anarquismo, iluminismo, cristianismo ou qualquer outro “ismo” que exista por aí. Fazer discursos inflamados em defesa da mulher, das baleias, da natureza ou do mico leão dourado. Se auto proclamar rebelde, com causa ou sem, revolucionário, inconformado é legal, da moral. Você é tratado como uma pessoa politizada, intelectual, inteligente. O difícil é por a mão na massa. É colocar isso tudo em prática. Ou melhor, o difícil é ter vontade de por tudo isso em prática.
Não são as idéias que mudam o mundo por mais bonito que isso possa soar aos nossos ouvidos, mas sim as pessoas e suas atitudes. Sem as atitudes de alguns poucos, que tiveram a coragem de colocar a cara para bater, não teríamos tido a revolução francesa ou a revolução russa ou qualquer outro tipo de revolução. Os ideais só servem para dar inspiração o que nos cabe é à parte da transpiração.
Esse “estalo” me ajudou a entender que me acostumei a justificar minha apatia ou covardia, através de textos indignados carregados de inconformismo e revolta tentado assim aliviar um pouco do peso em minha consciência por ser um completo hipócrita. Critico tudo e a todos, mas não faço nada ou como dizia Jesus Cristo, enxergo o cisco no olho de meu vizinho, mas não vejo a trave no meu.
Não vou sair distribuindo tudo que tenho para os pobres ou coisa parecida, mesmo porque não tenho muito. Acabaria me tornando apenas mais um e não resolveria nada.
O que vou tentar fazer de hoje em diante é assumir minha hipocrisia, minha parcela de culpa nas desgraças do mundo. Não vou ficar mais só na conversa e papo furado pregando no deserto. Vou “eu” colocar a cara para bater. Sei que não será fácil ou rápido e vou começar revolucionando o que acho que esta mais errado no mundo atualmente, minhas convicções e princípios.

hi.po.cri.si.a sf (gr hypókrisis+ia1) Manifestação de fingidas virtudes, sentimentos bons, devoção religiosa, compaixão etc.; fingimento, falsidade.


O Salvador, Darli

Absolutamente comum.Sem sombra de dúvida esta é a melhor maneira de definir Darli. Inteligência mediana, vinte e sete anos, solteiro, um metro e setenta e sete, noventa quilos, cabelos e olhos castanhos e ambos pouco expressivos. Recém formado em administração e com um futuro razoavelmente promissor em uma empresa de importação e exportação de alimentos. Teria uma vida tão apática e insignificante como a de milhares de outras pessoas e nunca se daria conta deste fato, acredito mesmo que seria até feliz afinal quanto maior o conhecimento maior é o sofrimento.Eventualmente casaria com alguma menina ingênua que estaria grávida e viveria preocupado com o aluguel, a prestação do carro o mercado etc, etc, etc. Mas como somos marionetes nas mãos do destino a sua vida tomou um caminho um pouco diferente.Como vinha se destacando profissionalmente por sua ambição, empenho e arrojo foi convidado para participar de um jantar na casa de seu patrão que além de ser um dos homens mais ricos de Curitiba também exercia uma grande influência na vida política da capital.Devidamente trajado, cabelos penteados, tocou a campainha da porta da mansão onde acontecia a festa. Enquanto esperava para ser atendido imaginava que as portas que se abririam para ele não seriam as de uma casa, mas sim as de seu futuro.A festa corria exatamente como ele imaginava. Bebida e comida da melhor qualidade, pessoas muito bonitas, ricas, influentes e sobre tudo fúteis. Conversava de forma descontraída quando viu pela primeira vez a mulher de seus sonhos, aquela que transformaria toda sua vida, Carla.Vinte e cinco anos, um metro e setenta, olhos castanhos esverdeados, cabelos cor de cobre longos e cacheados, um corpo escultural em um vestido preto justíssimo com um decote em “V” realçando seios perfeitos. Rosto de anjo, mas com trejeitos de um demônio. Boca simplesmente perfeita para ser beijada com o lábio de cima fino e o de baixo grosso.Carla era a mulher ideal, uma verdadeira obra de arte. Filha de um desembargador cresceu cercada de luxo e conforto. Formada em psicologia por mera formalidade, pois em toda sua vida nunca trabalhou. Apesar de ter todos os motivos do mundo para ser feliz sempre se via um certo ar de insatisfação ou mesmo infelicidade em seu rosto. Como esperado casou-se com um homem mais velho extremamente rico e poderoso que para a infelicidade de Darli era seu patrão.O amor, o verdadeiro, aconteceu para Darli como deve ser. A primeira vista. Desde o instante em que ele colocou os olhos em Carla ele sabia que ela seria sua. Tinha plena convicção que ela era o amor que ele tanto esperou. Sentia como se a conhecesse em toda sua vida e finalmente a sensação de vazio que o acompanhou durante todos os seus vinte e sete anos havia desaparecido. Uma certeza tão grande que ele não se conteve e mesmo ela estando ao lado do marido se aproxima e na frente de todos declara seu amor.- Sei que não nos conhecemos, mas você é a mulher da minha vida. Tenho plena certeza que nascemos um para o outro. Largue seu marido e venha viver comigo. Juro por tudo o que é mais sagrado que dedicarei cada minuto de minha vida para lhe fazer a mulher mais feliz do mundo. Trabalharei e me tornarei muito rico e poderoso e nunca deixarei faltar nada a você.Carla permanece extremamente tranqüila. Apenas da um breve sorriso e fala:- Acredito que até pode ser verdade cada palavra sua, mas não existe nada no mundo que você possa me dar que eu já não tenha.Dizendo isto se afasta e em seus olhos uma mistura de esperança e desilusão. Como alguém que necessita de ajuda, mas já não tem forças para gritar.Gesto romântico, apaixonado e sincero. Conseqüência rápida, brutal e dolorosa. Com a maior discrição, seu agora ex-patrão ordena a seus capangas que o retirem dali e lhe apliquem um corretivo.Mesmo muito dolorido devido à surra que levou Darli não se arrependia de nada. Sabia que só a conseguiria se tivesse muito dinheiro para poder tratá-la como ela merecia. Então foi a luta.Mudou-se para o interior onde trabalhou durante três anos de sol a sol até se tornar, como havia prometido, um homem extremamente rico e poderoso. Mas durante todo este tempo seu único objetivo era Carla.
Agora rico e respeitado, retornou a capital onde foi a procura de seu grande amor. Não pouparia esforços ou dinheiro para conquistá-la. Enviou cartas, telefonemas, dúzias e mais dúzias de flores, uma vez chegando a contratar um helicóptero para espalhar pétalas sobre a casa de sua amada. Comprou jóias, diamantes, a convidou para viagens a Europa, a presenteou com carros belíssimos envoltos em enormes laços vermelhos, telefonou inúmeras vezes implorando para jantar e nada. Carla nunca retornou nenhuma carta ou telefonema e devolvia todos os presentes. Seu marido como agora não podia mais mandar surrar alguém tão rico como Darli, o processou por assédio e entrou com um mandato de segurança.Durante um ano Darli não visitou amigos ou familiares e não cuidou de seus negócios e como dizem, é o olho do dono que engorda o gado, Darli quebrou. Voltou a estaca zero. Estava novamente sem dinheiro e continuava sem seu grande amor.
Por experimentar o sofrimento tão intensamente, tornando-se um verdadeiro conhecedor, virou poeta, pintor e escritor.
Por desespero, em uma madrugada de julho aonde os termômetros chegaram a zero grau, Darli já não sabendo mais o que fazer, pois se quer conseguia trocar uma única palavra com sua amada toma uma atitude extrema. Fica completamente nu e se acorrenta ao portão da mansão onde mora Carla e diz que só sairia de lá quando pudesse conversar com ela.Tentando evitar o escândalo Carla vai até ele.
Darli mal se continha de felicidade por estar revendo sua musa e com certa dificuldade para falar diz:
- Sei que pareço... Não, sou louco fazendo isto, mas é por amor a você. Também entendo que você está com medo por eu não ter mais nada, mas não preocupe, com você ao meu lado voltarei a ser rico, eu prometo.
Carla olhando pra aquela figura nua em sua frente, sente uma mistura de pena e admiração e com uma voz triste fala:
- Porque você continua a me procurar? Devolvi todos os seus presentes. Eu já lhe disse que tenho tudo o que o dinheiro pode comprar. Não há nada que você possa me dar que eu já não tenha ganhado. Agora vá embora e me deixe em paz. Por favor.
Dizendo isto se vira e vai embora. Os vizinhos chamam a polícia que leva Darli para um hospital onde ele fica internado com pneumonia. A única coisa em que Darli conseguia pensar durante sua internação eram nas palavras de Carla:
- Eu tenho tudo o que o dinheiro pode comprar. Não há nada que você possa me dar que eu já não tenha ganhado.
Então ao sair do hospital ele retorna para casa pega uma caixa de sapatos velha, embrulha com papel de pão amarra com uma fita e envia para Carla com um bilhete. Ela recebe o pacote, lê o bilhete, olha o conteúdo da caixa e abre um largo sorriso. Corre comunicar a seu marido que estava lhe deixando para viver com seu salvador, Darli. Um homem verdadeiramente sincero e que realmente a amava. Seu marido perplexo sem entender nada vai até o quarto pega o bilhete e lê:"Não vou lhe prometer que a farei feliz ou que nunca deixarei faltar nada para você ou mesmo que lhe amarei pelo resto de minha vida. O futuro a mim não pertence. A única coisa que posso fazer é dizer o que sinto agora, já, neste exato momento: Com todas as forças de meu ser, AMO VOCÊ! E como prova de meu amor envio tudo que tenho na vida."Dentro da caixa havia um trôço enorme em um espiral perfeito. Quase um quilo da mais pura merda feita por Darli momentos antes, pois ainda estava quente. Uma verdadeira obra prima da fisiologia humana.
O Otário

Como não poderia ser diferente foi em uma mesa de bar batendo papo, na verdade ouvindo mais que falando, com um grupo de amigos que tive a estarrecedora revelação de minha triste condição:
Sou um tremendo OTÁRIO!
Dizem que gênio é aquele que enxerga o óbvio. E sem dúvida nenhuma não é esse o meu caso, afinal fui só perceber isto agora trinta anos depois de minha vinda para este duro e triste mundo. Como em todos os casos quando você é posto diante da realidade nua e crua, como, por exemplo, a morte eminente ou uma traição violenta, passei por todos aqueles estágios com seus “çãos”: negação, negociação e finalmente aceitação.
Fui atrás de respostas para esta triste revelação sobre meu ser. Procurei no “pai dos burros”, o que para muitos admitir sua ignorância já é uma prova de “otarisse”, e estava lá.
Otário sm. 1. Gír. Indivíduo tolo, simplório.
Ainda em negação me perguntava será mesmo que sou um otário?
Dizem que são nossos atos e convicções que nos definem. Então resolvi examinar sem preconceitos e da maneira mais sincera possível os meus atos e convicções.
Acredito na boa educação, em tratar aos outros com respeito, dizer bom dia, obrigado, desculpe. Que o cavalheirismo não deveria ter caído de moda. Sempre que possível dar a vez aos outros e ser paciente com os mais velhos. Quando caminhando em companhia de uma dama sempre ao seu lado não na frente ou atrás e com ela para o lado de dentro da calçada evitando assim que possa ser atropelada. Acredito realmente, não na igualdade entre sexos, mas que a mulher é superior ao homem afinal pode gerar outra vida além de ser mais sensível.
Gosto de ouvir música, mas ouvir mesmo não assistir a um “clip” na MTV. Gosto de sentar em meu quarto no escuro com o fone de ouvido e ouvir minhas bandas prediletas como Pixies, Ramones, Dinosaru Jr, Bloc Party entre outras, durantes horas.
Gosto de ler, e acredite se quiserem, ler livros e livros grossos, com duzentas, trezentas páginas ou mais de autores como José Saramago e outros nem tão expressivos, mas que saibam contar uma boa história.
Acredito, e o que é mais espantoso, ponho em prática a fidelidade. Que uma relação entre duas pessoas deve ser baseada no respeito e amor ao outro. Não acredito nas puladas de cerca, nas escapadinhas com suas mentiras e dissimulações para “apimentar” o relacionamento. Ou você gosta e quer ficar junto ou não gosta e pronto. E aí deve ser sincero com você e com o outro ou ir procurar o que lhe falta.
Acredito em Deus! Realmente acredito. É verdade que não neste Deus vingativo, rancoroso que a qualquer falha nossa nos manda para o inferno por toda a eternidade sem apelação ou chance de reabilitação. Mas sim em um Deus que nos mandou aqui para nos tornarmos sua imagem e semelhança, ou seja, seres perfeitos. E obtemos isto através do conhecimento de nós mesmo e da prática da caridade, paciência, resignação. Que viemos para cá para nos tornarmos melhores e tornar este mundo melhor para as próximas gerações.
Acredito na importância da família. Em não jogar lixo na rua, não maltratar animais, não falar palavrões, não se aproveitar de uma situação que possa prejudicar aos outros em benefício próprio. Prática muito comum de nossos políticos e funcionários públicos.
Acredito na educação como meio para melhorar o país. Que não é necessário passar por cima de tudo e de todos para alcançar nossos objetivos. Que o dinheiro não é tudo, não trás felicidade e não manda buscar. Que o ser humano ainda é mais importante que os resultados.
Mas sejamos sinceros, somente um completo OTÁRIO teria estas diretrizes e o que é pior as seguiria. Estamos no século vinte e um! A tecnologia superou de longe nossa humanidade. Devemos matar sem piedade para não sermos comidos vivos. Este é o consenso geral. Todos acreditam e seguem isto ao pé da letra. Cada um por si e Deus contra todos. Quem não fizer isto será atropelado pelo trem da evolução. È muito mais fácil acreditar e por em prática o olho por olho do que o dar a outra face.
Não sei quando nem porque me tornei um otário ou utilizando o termo inglês para perdedor, um “Loser”. Talvez tenha sido culpa dos meus pais e a educação que me deram. Ou o fato de ter estudado em colégios públicos a vida inteira. Infância pobre, más companhias, sei lá. Sei que não será fácil mudar meus paradigmas e convicções, mas como disse no início posso não ser um gênio, mas aprendo com meus erros e prometo que estes erros, minhas convicções, serão corrigidos e logo estarei apto a voltar a integrar a raça humana.
Palavra

Sou fã da palavra seja ela escrita, cantada, falada, sussurrada, gemida ou mesmo a não dita, aquela que fica subentendida e que geralmente é a que mais nos toca.
Algum tempo fui questionado do porque de eu não escrever com mais freqüência.
Fui logo dando as desculpas mentirosas normais, aquelas que soam tão naturais que a gente nem percebe mais. Como, eu te amo, ou, não, você não engordou!
Outras vezes são mais poéticas como, não ando muito inspirado, ou a minha favorita, tudo o que havia de bom para ser escrito, já foi escrito.
Mas como eu disse são desculpas, tentativas para escapar desta maldita necessidade. Confesso que escrever para mim é um sentimento contraditório. Assim como é um tormento, uma angústia crescente, também é algo que me proporciona uma satisfação tão intensa quanto música, sexo ou chocolate. E só um chocólatra como eu compreende a intensidade da experiência áudio-gastro-erótica de fazer sexo com cobertura de chocolate ouvindo boa música.
As poucas vezes que sento e me proponho a escrever é porque já não agüento mais. As palavras em minha mente estão suplicando para serem escritas e ganhar vida. Idéias surgem em turbilhão como uma avalanche. Fico extremamente impaciente e inquieto. É como se uma energia percorresse todo meu corpo. Os pelos de meus braços e nuca se arrepiam, ás vezes acredito mesmo que terei um orgasmo ao escrever algo que realmente sinto. E não se iludam, tudo o que vale a pena na vida é assim. Você tem que sentir toda sua intensidade, paixão e vontade. E com a palavra não seria diferente ao contrário você tem que sentir na pele, no tato, na ponta da língua. Como diz Rubem Alves, “o saber tem que ter sabor”.
Dizem que a maneira para nos tornarmos imortais é através de nossos filhos que carregam nossa herança genética, mas acredito que a verdadeira imortalidade é conseguida quando tocamos verdadeiramente o coração de uma pessoa. E não existe melhor maneira para isto do que utilizar a palavra seja ela em qualquer uma de suas muitas formas.
Então porque na faço isso mais vezes? Porque esperar até o extremo para escrever?
Simples. Por que não sou eu quem decide quando ou quanto escrever, mas sim as palavras. São elas que tem vida. Não são como eu que apenas sobrevivo neste mundo cinza. Os sentimentos não são meus, são delas.
Em suas mãos não passo de uma prostituta, que espera ser usada até a exaustão, satisfazendo seus desejos mais profanos e profundos e ao final suplicante só espera pela hora que será novamente solicitada.

“Quem escreve, afinal – o escritor ou a escritura?”.
Haroldo de Campos
O Viadinho

Final de expediente em uma instituição governamental.
- Olá Marli.
- Até que enfim Orlando! O dia intero fora, heim? Conseguiu arrumar tudo com a secretaria estadual?
- Tudo. Levei o dia inteiro correndo atrás de assinatura de fulano, visto de cicrano, rubrica de beltrano, mas finalmente saiu à verba para reforma da ala oito. Antes tarde do que nunca!
- É, só que desta vez foi tarde.
- Porque?
- Mataram o “viadinho”!
- Sério! O que houve?
- Hoje quando o Noguemar estava fazendo a vistoria matinal encontrou o coitado esticado no chão todo machucado. Levaram para o doutor, mas não teve jeito.
- Quem fez isso?
- Foram os outros. Só que desta vez bateram até matar. Quando eu falava que um dia isto iria acontecer ninguém me ouvia. Já tinham batido nele outras vezes sendo que em duas quase mataram. Só porque o coitado era diferente. Mas ninguém fez nada!
- Também não é assim Marli. Para onde nós iríamos mandar ele? Você sabe que nós estamos lotados. Mal conseguimos alimentar e medicar os que temos aqui hoje. Você sabe que a secretaria não manda verba pra cá. Sempre tem algo mais importante.
- Eu sei. Mas é triste. Lembra quando ele chegou aqui? Eu avisei que não iria dar certo. Ele sempre foi diferente. Todo delicado, não ficava junto dos outros. E pra piorar era preto.
- Não era bem preto. Era escurinho. Pobrezinho. Até a mãe o rejeitou.
- Deveriam ter mandado ele para Holanda quando tiveram a oportunidade. Eles não queriam adotar ele ou algo assim? Lá ele seria mais aceito.
- Era um intercâmbio, mas é verdade. Lá as coisas são diferentes. As leis são outras. Eles não ficam em cubículos como aqui mal alimentados. São bem tratados. Até parece que eles tinham outros como ele lá, mas a burocracia foi tanta que empacou.
- Isso prova que não importa onde, aceitar as diferenças sempre é complicado.
- É, o preconceito esta em todos os lugares. Basta sair do comum e pronto, ninguém te aceita.
- O pior foi à papelada que eu tive que preencher para explicar o que houve.
- Nem me fale. Mas resolveu tudo, né?
- Claro!
- Ainda bem! Se não já querem fazer sindicância e coisa e tal e é aquele inferno.
- É, mas agora já está tudo arrumado. Ninguém vai perceber nada. Será como se o “viadinho” nunca tivesse existido. O Noguemar me ajudou e até do corpo nós já nos livramos.
- Ainda bem Marli.
- Já deu meu horário e eu vou embora. Você pegou escala amanhã?
- Peguei. Trabalhar em pleno domingo. E você sabe como é isso aqui no domingo. Dia de visitas, as mães com os filhos pequenos correndo para todos os lados.
- Domingo é dia de levar as crianças para ver os animais.
- É verdade.
- E nessa história pobre do “viadinho”.
- “Viadinho”! Oh Marli! O correto não é “viadinho” com “i”, mas veado ou cervo.
- Tá bom, tá bom. Falou o especialista. Até segunda.
- Até.
The Song Remains The Same

Ricardo morava com os pais em uma casinha de três peças alugada e a muito era quem sustentava a família, pois seu pai estava desempregado e não fazia muita questão de procurar trabalho afinal poderia encontrar. Para piorar passava a maior parte do tempo em bares e vira e mexe chegava em casa bêbado e batia em Ricardo e em sua mãe. Em resumo sua vida era bem comum como a maioria dos garotos do subúrbio de uma capital.
A pesar de sofrido era um garoto forte e na medida do possível feliz, estudava a noite, era inteligente e o que o mantinha vivo era a esperança de um dia tirar a mãe daquele inferno.
Ao acordar aquela manhã Ricardo sabia que não seria um bom dia. Já no ônibus quando colocou o vale transporte na catraca a mesma o engole e não o deixa passar, o cobrador diz que ele não colocou nada e então começa a discussão. Por pouco ele não é jogado para fora do ônibus. Na empresa é acusado por uma secretária de perder um cheque o que quase lhe custa o emprego sendo que na realidade o cheque estava na gaveta de um gerente. Chega no colégio e encontra sua namorada entre beijos e abraços com um dos “mauricinhos” da classe. Um dia perfeito. Mas como desgraça pouca é bobagem o pior estava por vir. Ao chegar em casa tarde da noite encontra sua mãe caída atrás da porta em meio a uma possa de sangue já sem vida com os olhos abertos e a cabeça rachada. No outro canto esta seu pai debruçado na mesa em sua frente uma garrafa de cachaça quase vazia. Ricardo fica perplexo, sente suas pernas tremer, seu estômago começa a dar voltas e não querendo acreditar no que via começa a chamar pela mãe. Com as mãos trêmulas tenta levantá-la, mas ao tocar em seu corpo já frio percebe que ela não mais levantaria, que ele nunca mais ouviria sua voz, que tudo aquilo em que ele ainda acreditava havia morrido ali junto com ela, que sua vida dali para frente não mais existia. É quando escuta a voz do pai ainda bêbado que diz:
- Ah! É você. Essa vaca não queria fazer comida, disse que não tinha nada na dispensa. Mas eu sei que não tem nada porque essa vadia deve estar escondendo para o amante.
Foi então que Ricardo percebeu que mesmo tendo perdido a única pessoa que realmente se importava com ele, ele não havia derramado uma única lágrima e pela primeira vez em toda a sua vida ele sabia exatamente o que fazer. Levanta-se calmamente vai até o pai sem dizer uma palavra olha bem em seus olhos pega a garrafa que estava sobre a mesa e com um golpe violento parte a garrafa na cabeça do pai, que cai desmaiado. Sabia que não adiantaria chamar a polícia, pois eles como já fizeram várias vezes prenderiam seu pai, mas isto não traria sua mãe de volta. E após quinze anos de surras, xingamentos, humilhações não era esse tipo de castigo que seu pai merecia. Resolve então que chegara a hora de acertar as contas com ele. Coloca seu pai onde ele mais gostava de ficar, em uma poltrona em frente à TV preto e branco, coloca uma meia encharcada de urina na boca do pai e amarra. Arrasta sua mãe até a cama, lava seu rosto troca sua roupa senta ao seu lado e como que de seu peito brotassem espinhos diz:
- Não se preocupe mãe, ele nunca mais vai machucar ninguém e me perdoe por não ter conseguido te proteger. Obrigado por ter suportado todos estes anos de sofrimento. Não culpo a senhora por ter casado com ele, sei o que a senhora passou na casa do avô e sei que a senhora esta bem pois saiu do inferno para o céu. E como a senhora sempre dizia, sorria amanhã é outro dia.
Então ele levanta-se dá uma última olhada em sua mãe e com uma dor que o corroia por dentro fecha porta. Tranca a porta da frente com o guarda roupa, coloca água para ferver, caminha até o pai com um chinelo “havaianas” na mão, para enfrente a ele e começa a bater com toda força possível no rosto dele até que ele acorda. Ainda tonto com as bofetadas tenta falar e se engasga com a urina. Ricardo o agarra pelo cabelo puxa-o para traz olha-o nos olhos e com toda raiva e sofrimento acumulados nos seus quinze anos de sua vida diz:
- Daqui para frente você respira se eu mandar. – seu pai tenta resmungar e leva outra chinelada no rosto.- Não fui bem claro? – e sem resposta dá outra chinelada. Seu pai com o rosto já marcado pelas chineladas balança a cabeça desesperadamente positivamente.
- Bom! Acho que agora estamos nos entendendo. O que eu quero saber é muito simples, porque um filha-da-puta como você casa? Não, melhor por que você nasceu?
Como seu pai continuava amordaçado não podia responder então Ricardo pega um cabo de vassoura, levanta as calças do pai até o joelho e começa a bater em suas canelas a ponto de quebrar o cabo. Como que em transe Ricardo fala baixo quase sussurrando:
- Você viu o que você fez? Você acha que é barato uma vassoura. Sabe o quanto eu trabalho pra colocar comida, água, luz aqui? E o que você faz? Mata a única pessoa boa que eu conheço. – e com o pedaço que sobrou bate na cabeça de seu pai.
É então que Ricardo percebe que seu pai esta chorando, e resolve tirar a mordaça. O seu estado era grotesco devido a garrafada sua cabeça estava coberta de sangue, o rosto estava inchado devido as chineladas e suas canelas estavam quebradas. Vendo seu pai chorar pela primeira vez na vida, ele olha para ele e diz:
- Como alguém pode ser tão patético! Não é muito bom ficar do outro lado da história, não é?
O velho assustado tenta chamar por socorro e leva um soco no nariz.
– Faça isso de novo e eu corto sua língua. Eu juro.
Seu pai agora com o nariz quebrado, com gosto de sangue na boca e soluçando tenta se explicar:
- Foi um acidente, eu estava bêbado, cheguei em casa não tinha comida nas panelas ela começou a me chamar de vagabundo dizendo que eu só bebia que ia me deixar. Eu fui para cima dela e a empurrei ela bateu com a cabeça no fogão e ficou ali. Foi um acidente. Por favor, pare com isso.
- Pare com isso! Agora quer que eu pare, enquanto estava bêbado fazia o que queira, depois vinha pedir desculpas dizer que isso não ia mais acontecer, que você ia mudar e olhe o que você fez. Pois agora meu “chapa” você vai pagar por tudo o que fez. E uma coisa você me ensinou, pode até existir céu, mas o inferno é aqui. E hoje eu sou o diabo.
Seu pai em desespero vendo que Ricardo estava descontrolado começa a gritar de novo. Ricardo caminha até o fogão pega a água fervendo, seu pai começa a gritar desesperado pedindo pelo amor de Deus para que ele não fizesse aquilo, mas Ricardo só pensava em sua mãe então puxa a cabeça do pai para traz segura-a com o braço, tapa seu nariz e quando ele abre a boca derrama a água dentro, cozinhando sua boca. Devido a dor seu pai desmaia. Ricardo não se preocupava com os vizinhos, pois quando ele batia em sua mãe eles não vinham acudi-la. Mas como desta vez os gritos eram de homem e não de mulher como eles estavam acostumados foram até lá perguntar o que estava havendo. Primeiro chamaram e não obtendo resposta tentam abrir a porta e é ai que Ricardo grita:
- Se entrarem aqui eu mato esse filha-da-puta!
Dona Célia a vizinha mais antiga tenta dialogar com Ricardo, mas vendo que não teria jeito resolve chamar a polícia. Quando a polícia chega o pai de Ricardo já estava acordado e devido as queimaduras gemia muito. Após varias horas de negociação a polícia vendo que não teria acordo resolve invadir a casa de Ricardo. Percebendo o que aconteceria ele chega para seu pai com uma faca serrilhada na mão uma panela com álcool e diz:
- Você nunca mais vai por um filho no mundo.
Abre a calça do pai puxa seu pinto para fora e serra-o jogando dentro da panela e botando fogo. A polícia ouvindo os gritos de agonia do homem invade a casa e encontra Ricardo com as mãos ensangüentadas parado com a faca no pescoço do pai que não parava de gritar.
O rapaz com os olhos cheios de lágrimas encarando os policiais diz:
- Onde vocês estavam quando ele batia em mim, ou quando ele matou minha mãe.
E num gesto repentino levanta os dois braços gritando. Quase que instantaneamente é fuzilado caindo morto.
Paradoxo

Manoel Severino da Silva, investigador da polícia civil, quarenta e cinco anos, morador da região metropolitana de Curitiba, filho de Jeremias capitão reformado do exército, homem duro, de muita disciplina, que tinha no filho o orgulho maior de sua vida, pois mesmo não ingressando no exército ainda assim seguia a carreira militar. Manoel assim como o pai, sempre achou que lugar de bandido é no “xilindró” ou no cemitério e preferencialmente e sempre que possível optava pela segunda opção.
Conhecido no sétimo distrito policial como homem de extrema coragem, disciplina e rigidez o que pode se atribuir ao longo convívio com seu pai. Em sua casa não era diferente conduzia a vida dos filhos e da mulher com “mão de ferro” não admitindo deslizes morais ou de conduta. Mas como diz o ditado “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”, gostava de uma boa farra.
Acido-o freqüentador da casa de dona Marília Liz, uma cafetina muito respeitada na noite curitibana, onde passava a maior parte de seu tempo livre e aproveitava para cuidar de seus “negócios” fora da polícia.
Sexta-feira seis horas da tarde Manoel de folga, mas sempre acompanhado do “pacificador” como gostava de chamar seu trinta e oito cano curto cromado, caminha tranqüilamente pela rua das flores e é na primavera que ela realmente faz jus ao nome que lhe atribuíram, quando ao passar em frente ao “Palácio Avenida” percebe um alvoroço a alguns metros a sua frente.
Um rapaz magrelo, com o aspecto de quem não come a dias, descalço, com as roupas sujas, rosto marcado pela vida nas ruas desde muito cedo e com grandes olhos negros de quem só conhece a desilusão, agarra a bolsa de uma senhora robusta muito bem vestida, pele rosada de quem goza de perfeita saúde e que da vida só conhece aquilo que vê da janela de seu apartamento no Batel ou de dentro de seu carro importado.
Com um puxão muito forte que quase derruba a senhora, pois comparando o estado físico dos dois somente assim ele conseguiria ficar com a bolsa, sai em disparada. Manoel pré-condicionado devido aos longos anos na polícia, quase que imediatamente, puxa o “pacificador” e com voz de comando grita em meio a multidão que assistia tudo com interesse despreocupado de quem já esta acostumado com isto.
- Parado safado, ou eu atiro.
Não obtendo o resultado esperado Manoel da um tiro para cima fazendo não só o ladrão parar, mas todos que estavam ao redor.
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Antes a escuridão e o frio do aço em um repouso quase sagrado, confinada a um espaço minúsculo, agora o calor intenso e a imensidão de um céu azul. Expelida com tanta fúria como a mão que a segurava, como se carregasse com ela os sentimentos de quem puxou o gatilho, mas para ela não faz diferença qual é a intenção ou o motivo, apenas esta livre e nada a impedirá de chegar, mesmo que a lugar algum e ela apenas sobe, sobe ...
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Dona Lúcia quase que no mesmo instante sai do escritório de seu marido que fica no sétimo andar do edifício Evereste na bela Comendador Araújo, levando com sigo o pequeno Lucas, três anos, olhos azuis como o céu daquele tarde de primavera, cabelos loiros encaracolados, parecendo um anjo. Lucas era o resultado de muitos anos de espera e reza de dona Lúcia, pois um grave problema de saúde a impedia de dar a luz e quando já não havia mais esperanças nasce o tão esperando rebento. Planos e oportunidades não faltariam para ele, pois Lúcia era casada com um arquiteto muito conceituado e se isto não bastasse era filha de um banqueiro muito rico. Tinha uma vida muito sossegada, não lhe faltava nada e sua maior preocupação era decidir o que o filho seria no futuro, arquiteto como o pai, advogado como os tios, médico, tantas possibilidades, mas uma coisa era certa seria uma pessoa muito bem sucedida e muito respeitada na sociedade curitibana.
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Se aproximando, Manoel ordena que o rapaz coloque as mãos na cabeça e com à agilidade que só tem quem cresceu solto nos campos com uma “chinela” derruba a raquítica figura. Ao cair o menino que devia ter no máximo dezessete anos, mas com aparência de doze, bate com o rosto no chão e quebra o nariz que começa a sangrar muito. O povo ao redor vai ao delírio, alguns pessoas gritavam lincha, outras aplaudiam com entusiasmo, como se ali deitado ao solo estivesse toda a causa de seus problemas e frustrações. O rapaz, se engasgando com o sangue em sua garganta só se preocupava em gritar:
- Sô menor, sô menor!
Manoel coloca o joelho na cabeça do menino e com apenas um braço segura as duas mão do rapaz o imobilizando e pede para que alguém chame um policial pois estava de folga e precisaria de testemunhas para acompanhá-lo até a delegacia para poder efetuar o flagrante. Como se dissesse palavras mágicas todos em volta começam a desaparecer nem mesmo a dona da bolsa estava mais ali, pois não queria se envolver com aquele tipo de situação. Manoel meio desolado sabendo que não poderia prender o rapaz afinal devidos as leis atuais além do rapaz ser menor ele não teria uma única testemunha do ocorrido, ordena que ele saia dali procure um médico e que se o visse outra vez aprontando, o tiro não seria para cima.
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Sem se preocupar com as leis ou os motivos que a deram vida ela continua subindo, mas até mesmo ela submete-se a única lei que não se pode quebrar, a lei da gravidade. Após subir mais alguns metros rompendo o ar, lutando contra o vento com toda fúria que lhe era possível, vai perdendo as forças parecendo mesmo que estivesse cansada e começa a diminuir a velocidade até que vencida, para em pleno ar como um beija-flor. Permanece assim durante alguns segundos admirando o mundo lá de cima contemplando sua beleza e tranqüilidade, então numa parábola perfeita começa a descer.
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O pequeno Lucas corre feliz pela calçada brincando com uma bola amarela, sempre acompanhado por dona Lúcia que cuidava do menino como quem cuida de um jarro de porcelana chinesa. Seu marido achava exagero e que isto iria “estragar” o garoto, o que não preocupava nem um pouca dona Lúcia. Lucas jogava a bola com muita força para o alto e sorria quando ela caia e a cada sorriso dele o coração de Lúcia enchia-se de felicidade e paz interior.
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Seguindo com seu passeio ainda com adrenalina correndo em seu sangue e com a sensação do dever quase cumprido, Manoel dirigia-se ao bar “Stuart” localizado na praça Osório, famoso por conter em seu cardápio carnes de caça, que aprendeu a freqüentar com seu pai, onde encontra seus amigos. Senta próximo a janela e começa a contar o ocorrido para uma platéia atenta e acostumada a ouvir as peripécias do “Cabo Mané” como era conhecido ali. Gesticulando muito e falando alto para que todos pudessem ouvi-lo, conta como imobilizou e derrubou o “elemento” com apenas um golpe. Após terminar um homem gordo de bochechas rosadas e um largo bigode grita:
- Viva Mané, pois se todos os policiais desta cidade fossem como ele não precisaríamos mais ter medo de caminhar nas ruas.
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Agora em sentido contrário ela desce, primeiro muito lenta como se a preguiça tivesse se apoderado daquela pequenina criatura, mas com o passar do tempo novamente à fúria vai tomando conta de seu pequeno corpo metálico e cada vez mais rápido ela desce e desce sem se preocupar com o que encontra pela frente pois agora nada poderá pará-la nem mesmo os fortes ventos que lhe ordenavam a direção.
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Mais uma vez com a alegria de quem não tem maldade Lucas arremessa a Bola amarela para o alto, dona Lúcia olhando tem a impressão de estar vendo dois sóis no céu azul e como mágica vê um pequeno raio sair de um deles e atingir Lucas.
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No mesmo instante Manoel é ovacionado por seus amigos e num gesto firme puxa o “pacificador” mostrando a todos com orgulho e com voz de comando diz:
- Aquele safado levou sorte por eu ter atirado para cima pois da próxima vez que eu o vir vai ser bem no coração que é pra não incomodar mais. Pois como dizia meu pai lugar de vagabundo é no…
E neste instantes todos no bar unem-se a ele numa só voz dizendo:
- “Chilindró” ou no cemitério.
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Agora o repouso depois de ter sido arrancada com tanta fúria de seu lar ter viajado muito, sentido a raiva de quem a disparou, encontra finalmente um lugar macio, quente e confortável para descansar.
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Dona Lúcia olhando para seu pequeno filho estendido no chão com a blusinha branca agora vermelha de sangue, não consegue acreditar e vê ali caído junto aquele pequeno corpo todos seus sonhos e esperanças morrerem. Corre em sua direção e pegando-o no colo começa a chacoalhá-lo num ato desesperado de reavivá-lo. Olha para seu rosto e aqueles olhinhos azuis antes cheios de alegria agora sem vida parecendo negros. Em seu desespero grita como se toda dor do mundo estivesse dentro de seu peito e pronta para explodir:
- Meu filho, meu querido filhinho.
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Segundo laudo feito pela polícia civil entregue dias mais tarde a dona Lúcia foi constatado que a causa da morte do pequeno Lucas foi uma bala perdida e que devido às circunstâncias do caso a polícia a princípio não poderia fazer nada, mas que as investigações iriam continuar. Este laudo foi assinado pelo investigador Manoel Severino da Silva do sétimo distrito policial, que conduziu as investigações.
Solitária

Era uma tarde cinza, como sempre são as tardes do fim, e após seis meses de paquera, dois anos de namoro e três de noivado ele finalmente teve coragem e disse o que eu cobrava insistentemente ouvir sem querer escutar, todas as vezes que estava ao seu lado, mas com a nítida impressão de estar solitária.
- Olha amorzinho, não dá mais. Gosto de você, mas não te amo. Agora preciso ser sincero. Tenho o direito de ser feliz, assim como você também. Acho... Não, tenho certeza que você irá sofrer bem menos agora e encontrará alguém que te mereça e te faça muito feliz. Adeus!
Cretino! Para mim a felicidade era ele. Gosto de você! Se gostasse não estava me dando um pé na bunda. Preciso ser sincero! Que palhaçada, diz de uma vez tenho outra e pronto, você esta gorda, algo mais real. Se tivesse me dado uma bofetada no rosto teria sido melhor. Foi como se o chão sumisse sob meus pés. Subiu aquele nó na garganta, os olhos encheram de água, estomago começou a dar voltas, as pernas tremeram. Estranho, era como estar apaixonada só que ao avesso.
Sempre ouvir dizer que a dor de ser abandonada era uma dor real, física mesmo. Nunca acredite nisso até aquela fatídica tarde cinzenta. Na primeira semana depois do ocorrido ainda acreditava que ele iria se arrepender e voltaria a me procurar, dizendo que havia se arrependido que eu era a mulher da vida dele, que não podia viver sem mim, etc, etc. Obviamente eu o rejeitaria no começo. Claro para fazê-lo pagar pelo meu sofrimento e por ser burro e não perceber aquilo que eu sempre soube, que “EU” sou a mulher da vida dele. Assim passaram as horas esperando um telefonema, uma carta, um e-mail, aquelas mensagem que chegam em um carro fazendo a maior barulheira piscando luzes quando agente quase morrer de vergonha, enchendo o saco dos vizinhos, mas nada. E foram dias, semanas, meses e nada. Admito que só me convenci realmente que tinha acabado quando ao sair de uma farmácia vi o safado abraçado com uma loira. Sempre tem que ser loira!
O que posso dizer, me entreguei.
Depressão, não queria sair de casa, ficava chorando pelos cantos, não queria falar com ninguém o básico nestas situações. Como já disse a dor era realmente física. Continuava sentindo cólicas abdominais, enjôo, alterações intestinais, mudança do apetite, indisposição, fraqueza e pelo menos alguma coisa boa, emagrecimento. Como li em um livro: Não sou feliz, mas sou magra!
Por mim tudo bem não via mais sentido para viver mesmo. Mas como o que importa na vida são nossos amigos eles me obrigaram a procurar um médico. Após relutar bastante aceitei. Marquei hora com um psicólogo e fui. Ele falou um monte de baboseira que eu precisava reagir, que ele não me merecia, que eu era jovem, saudável, bonita. Acho que ele estava era me paquerando. Resolvi dar corda e realmente ele estava.
Ele era mais velho que eu, devia ter uns quarenta anos, mas bem apessoado, cabelos negros, ombros largos, parecia ser sincero, de confiança. Começamos a sair juntos, nos conhecer e finalmente namorar. Eu gostava dele, de sua companhia, sua conversa, mas continuava a sentir fraqueza, indisposição. Será que ainda estava apaixonada pelo cretino! Não podia ser já haviam se passado muitos meses, eu estava com outro e feliz! Resolvi procurar outro médico, só que dessa vez um de almas.
Seu Genuíno, meu avô, que apesar de ser iletrado sabia ler a alma humana profundamente além de conhecer o segredo das ervas. Segredo este recebido de seu pai que por sua vez também recebeu de seu pai assim sucessivamente.
Sentei em seu colo como fazia quando era criança e abri meu coração. Contei tudo o que estava se passando em minha vida. Ele como sempre fazia ouviu tudo atentamente e quando terminei falou tranqüilamente:
- Minha neta se tá solitária.
Não entendi direito. Será que ele não havia ouvido minha história. Eu já estava com outro e feliz, não podia estar solitária. Então falei:
- Vovô eu já estou com outro. E este é muito melhor que o cretino.
- Eu sei minha filha. Eu disse que esses enjôos, fraqueza que se ta sentindo é por causa da solitária. Se ta com lombriga filha. Toma esse chazinho que se logo melhora!
Um Dia de Sorte

Primeira página no Diário Popular:
Tarado aterroriza moradores do bairro Novo. Homem de meia idade bem apessoado com um recipiente cheio de ácido de bateria ataca suas vítimas sempre mulheres jovens jogando o líquido em suas pernas provocando graves queimaduras. Apesar dos esforços da polícia ainda não foram encontradas pistas do criminoso.
Comentário obrigatório em todo o bairro menos para Maura Taís de Arruda e Lima, filha do todo poderoso Mauro de Arruda e Lima delegado da sétima vara criminal de Curitiba conhecido e temido por todos e respondendo a vários processos por abuso de autoridade. Moça muito bela no auge de seus dezessete anos, terminando segundo grau e indecisa entre cursar direito como o pai ou seguir o modelo de sua mãe, arranjando um homem rico e tornando-se uma “colunável” de Curitiba. Como a grande maioria das famílias de classe média alta da sociedade curitibana foi educada com pouco respeito aos menos afortunados e uma grande admiração ao luxo e ao poder. Não podendo ser diferente Maura aprendeu com louvor os ensinamentos pois apesar da pouca idade já era conhecida por todos como antipática e arrogante por sinal como todos os Arruda e Lima.
Em contra partida temos Célio dos Santos e Silva, pintor de paredes criado com muita dificuldade nos arredores da capital por seu Antônio dos Santos e Silva, homem de um enorme coração e generosidade incomparáveis. Como todos os Santos e Silva, Célio também era conhecido por sua generosidade e acima de tudo sua honestidade.
Após trabalhar durante o feriado de “Corpus Cristi”, pois havia prometido ao proprietário da casa que pintava que o serviço ficaria pronto antes do final do mês, Célio voltava para casa cansado, mas como sempre fazia resolve parar na padaria para comprar pão e leite. Trazia consigo uma pequena e inseparável garrafa térmica que de acordo com o clima, humor e o gosto de Célio às vezes continha café outras suco e assim por diante. Ela ficava estrategicamente pendurada em seu ombro por um engenhoso recipiente em couro feito por ele mesmo. Enquanto esperava para ser atendido nota uma bela moça com ar muito arrogante ao seu lado, fazia muito calor aquele dia apesar de ser junho e ela usava um “shortinho” muito curto que realçava sua belas e torneadas pernas. Como era muito respeitoso e sua religião não permitia não se atreveu nem mesmo a ter pensamento impróprios em relação à menina quanto mais tentar puxar conversa. Nisso entra o pequeno Paulo, cinco anos de pura energia e pouca educação acompanhado por sua mãe dona Carmem que deixava que o filho fizesse o que bem entendesse. Ele entra correndo na padaria como um tornado que vai carregando tudo o que encontra pela frente e neste caso o que estava em sua frente era Célio. Na correria do garoto ele bate na garrafa térmica de Célio fazendo jorrar um jato de água fria nas pernas da moça que estava ao sue lado, Maura. Ela sentindo aquela coisa gelada escorrer por suas pernas leva um susto enorme e olha espantada para Célio que mais do que encabulado retribui o olhar pronto para pedir desculpas e com a maior educação possível fala:
- Desculpe. É que o menin…
Antes mesmo que ele pudesse terminar a frase ela começa a gritar e pular histericamente dizendo que ele tinha atirado ácido em suas pernas que estava ardendo, etc. Dona Carmem que estava ao seu lado leva um susto enorme e espantada olha para o pequeno Paulo e nota que sua blusa esta molhada. Começa a gritar também dizendo que ele tinha atirado ácido no garoto. O menino vendo a mãe gritar se assusta e começa a chorar, uma outra senhora atrás de Célio apontando para garrafa térmica fala:
- Ele tem uma bisnaga! Ele é o tarado da bisnaga!
Célio atônito e incrédulo com aquela situação tenta se explicar e levanta a garrafa térmica para mostrar que não passava disto uma garrafa térmica, mas antes que pudesse falar qualquer coisa leva com um rolo de salame italiano na cabeça que faz ele cair e bater com o rosto na quina do balcão. Agora com o meliante já abatido, desmaiado, em meio a uma poça de sangue começaram a ser tomadas as devidas providências:
Enrolaram uma toalha em Maura e tiram a roupa do pequeno Paulo e os levaram o mais rápido possível para o hospital. Colocaram a arma do crime, a garrafa térmica, dentro de uma isopor e decidiram chamar seu Mauro pai de Maura pois ninguém melhor que ele para resolver aquela situação.
Seu Mauro chegou pronto para resolver o problema. Perguntou por sua filha e tendo a resposta de que ela já havia sido levada para o hospital tratou logo de tomar as devidas providências em relação ao indivíduo. Ligou para dois de seus homens de confiança e pediu para que viessem até a padaria. Chegando Rubão e Rogério, seus comandados, mandou que algemassem Célio ainda desmaiado colocassem-no dentro de um Tempra branco e o levassem para uma casa na região metropolitana de Curitiba. Aproveitou também para acalmar os ânimos dos espectadores que queriam um linchamento público. Normalmente seu Mauro não participaria do “interrogatório” mas como desta vez era um caso especial, tratava-se de sua filha, conduziu pessoalmente os trabalhos.
Em um caso como este se deve atentar para todos os pormenores, sim, pois diante de seu Mauro estava um procurado tarado amplamente divulgado pela mídia o que lhe renderia no mínimo, uma boa propaganda que seria muito útil para seus planos de candidatar-se a deputado e seria um acerto de contas pessoal pois ninguém mexia com um Arruda e Lima e saía ileso. Além é claro da satisfação de estar fazendo-se cumprir a justiça. Enquanto prosseguia o interrogatório com todas as técnicas de praxe como afogamento, choque nos testículos, pauladas nas solas dos pés e afins, no outro lado da cidade Maura recebe a informação de que ela não tinha absolutamente nada em suas pernas assim como o pequeno Paulo. Ainda muito abalada com toda aquela situação e sem acreditar nos médicos pois para ela alguém como Célio boa gente não poderia ser, vai para casa. Após duas longas horas de “interrogatório” seu Mauro cansado de tanto bater em Célio liga para casa para falar com Maura e então fica sabendo do grande equivoco e logicamente se desespera pois se de alguma maneira alguém viesse a saber do ocorrido suas chances de candidatura iriam por água a baixo e sua imaculada carreira na polícia acabaria. Mas como homem de comando que sempre foi acalma-se e decide a situação da melhor forma possível, para ele é claro. Restabelecendo sua calma habitual olha para Célio quase morto e fala:
- Bom meu rapaz creio que cometemos um pequeno engano e acho que devemos desculpas a você. Mas desculpas aqui não resolveriam o problema então sejamos práticos. Tenho uma proposta a fazer. Esquecemos o caso, arranjo uns trocados e você segue com sua vidinha. É claro que não preciso salientar as conseqüências caso você não queira aceitar o acordo ou comente isto com alguém, certo? E para me assegurar do nosso acordo Rubão e Rogério iram acompanhá-lo até em casa.
Célio ainda com sangue na boca e com os olhos inchados, o que fazia com que mal conseguisse olhar para seu Mauro, aceita o acordo. É levado a um hospital e instruído a contar que havia sido assaltado por dois rapazes, mas que por sorte seu Mauro passava pelo local na mesma hora e o ajudou o que evitou sua morte.
Célio passou uma semana internado. Devido aos choques nos testículos nunca poderia ter filhos e mancaria o resto da vida. Sofreu deslocamento de retina no olho esquerdo, mas mesmo depois de melhorar e passados muitos meses nunca comentou com ninguém o ocorrido. E toda vez que pensava no assunto só conseguia imaginar a sorte que teve.
Isso mesmo SORTE, pois a única vez que não colocou ácido na garrafa fora pego.
Vândalos

Terça feira vinte e uma horas do dia dezesseis de agosto de dois mil e cinco. Uma noite fria com um leve nevoeiro típico do inverno curitibano. Em uma residência localizada em rua comum, de um bairro de classe média baixa comum na capital social do Paraná, presa entre duas árvores, plantadas e cultivadas pelos proprietários da residência, está uma faixa onde se lê:
Aos sábados feijoada.
Faixa esta que auxiliava na renda doméstica já que a venda da feijoada rendia um dinheirinho extra.
Neste mesmo dia e hora, para em frente à residência citada uma saveiro branca placa AMG 3038 com dois elementos dentro. Um deles desce com um pedaço de madeira com um gancho na ponta se dirige para a faixa e começa a dar pancadas na mesma para arrancá-la. Parada no portão da residência esta a filha dos proprietários com seu noivo que ficam olhando perplexos para o acontecimento sem saber se devem correr ou chamar a polícia. Assustada, pois duas semanas antes seu noivo foi assaltado á mão armada no mesmo local onde roubaram seu carro, chama por seu irmão.
O rapaz sai apressado, pois em sua cabeça ainda está fresca a lembrança do assalto de algumas semanas atrás, pergunta ao agressor da faixa o que esta acontecendo. O elemento nada responde e continua a dar pancadas na faixa que já esta praticamente toda destruída. Com receio o irmão da moça vai em direção ao elemento que segurando os restos mortais da faixa em uma mão e o porrete na outra apenas diz com muita raiva arrogância e desdém, como se fosse um senhor feudal e que todos ao seu redor não passassem de vassalos.:
- Você querer levar uma multa? Isso da multa! R$ 400,00! Por isso fica quietinho no teu canto se não sobra pra você.
E ignorando a rapaz entra na saveiro e sai.
Só então todos que viam a cena perplexos percebem que se trata de um carro da Prefeitura Municipal da Capital Social do Paraná ou como a prefeitura prefere a Cidade da gente.
No dia seguinte tentando achar uma explicação para o fato, depois de falar com mais de quinze pessoas, sendo dez com o mesmo atendente, nos mais diversos telefones como156 da prefeitura, procuradoria geral do estado até para o Palácio Iguaçu, finalmente descobre que se trata da Lei nº 11095/2004 que estava sendo cumprida.
Perplexo pensava:
- Uma lei? Mas então porque não fui notificado antes de arrancarem minha faixa? Eu paguei por ela. Não estava na rua. Nem muito menos atrapalhava a passagem de pedestres. E funcionários públicos trabalhando às vinte e uma horas de uma noite fria? Se eu precisar de um dentista público este horário não vou encontrar.
Mas não conseguia achar respostas.
Se for uma lei deve ser cumprida, mas de forma civilizada tratando os cidadãos como o que são, cidadãos pagadores de impostos. Com deveres e obrigações. Não ser tratados como criminosos, ofendidos e desrespeitados em seus direitos.
Indignado pensava:
- Se a lei existe deve ser para todos já que na mesma rua existem várias faixas penduradas nos muros como na igreja e outros comércios além de vários cavaletes, estes sim nas calçadas e que não foram retirados.
Sentindo-se traído começava a perceber finalmente a importância do voto, ou seja, nenhuma. Dos concursos públicos para o município que dá estabilidade aos funcionários da prefeitura. Lembrou que em todas as repartições públicas existe afixado em lugar visível o art. 331 do código penal dizendo que desacatar um funcionário público da cadeia. Que os funcionários públicos exigem serem tratados com respeito, mas eles não precisam fazer o mesmo.
Um sentimento de desamparo e angustia, indignação, revolta e resignação se acometeu dele. Pensava desolado:
- O que aconteceu em minha residência não foi o cumprimento de uma lei, mas sim um ato de vandalismo, autoritarismo e desrespeito chancelado pela prefeitura. Pois se minha irmã não estivesse no portão aquele momento, simplesmente acharíamos que a faixa foi roubada sorrateiramente durante a noite e ficaríamos com aquele sentimento de impotência e frustração tão característico de quando acordamos e vemos nosso muro todo pixado por vândalos. Mas fazer o que quando estes vândalos são pagos com o dinheiro de nossos impostos? Reclamar para quem? Esperar o que de um país onde todos os dias vemos nos jornais corrupção, mentira, descaso, falta de comprometimento? Chamar a imprensa, a polícia? O que eles iriam dizer? Foi só uma faixa! Eles estão cumprindo a lei!
Hoje finalmente ele entende o que é ser Brasileiro, Paranaense e Curitibano, pois foi tratado como tal, sem respeito, dignidade ou cidadania.
Ser Semelhante

Nunca soube verdadeiramente o que faltava, só sabia que alguma coisa não estava onde deveria estar. Sempre com aquela sensação de que esqueceu algo, mas não sabe o que. Ou que precisa fazer algo muito importante, mas não recorda o que. Vinte e tantos anos vendo todos a sua volta em estado vegetativo ou sonambúlico.
Era como estar olhando constantemente para uma vitrine, onde manequins inertes sorriem, conversam, absurdamente vivos felizes e conformados com suas prisões de vidro, aparências, ilusões e futilidades.
E ele, ele que sempre acreditou que era o único que realmente estava vivo não sentia nada. A não ser aquela constante falta de ser.
Ser feliz, ser bonito, ser inteligente, ser simpático, ser aquilo o que todos os demais esperam de um semelhante.
Dias se arrastam, horas voam, anos passam e ele a procura de um significado.
Foi buscando se encontrar que se perdeu.
Perdeu-se nos braços de cada prostituta que assim como ele, buscam incansavelmente este algo que tanto nos faz falta e nos atormenta.
Procurou em cada fundo de garrafa a resposta que era sempre a mesma, o reflexo de seu rosto distorcido, amargurado e cansado.
Nunca percebeu que a resposta sempre esteve ali, bem em baixo de seu nariz.
Se não pode vencê-los, una-se a eles.
Entrou para uma igreja, arrumou um bom emprego, uma moça direita e aos poucos começou a perceber que seus membros começavam a enrijecer.
Primeiro suas pernas, que não tinham mais vontade de sair e conhecer novas pessoas. A seguir seus braços começaram a ficar rijo e já não mais abraçavam como antes. Seus olhos já não captavam mais as belezas e cores do mundo, enxergavam apenas o cinza. Seu cérebro aos poucos foi parando e já não mais questionava a vida. Passou a executar as mesmas tarefas repetidamente sem reflexão ou questionamento. Até que um dia finalmente seu coração já não batia. Estava duro como pedra.
Então pela primeira vez em sua triste vida sentia-se vivo. Um ser humano completo. Afinal conquistara o direito de fazer parte de uma vitrine e poderia assim como seus novos amigos inertes ser FELIZ.
Mulher de Vida Fácil

8:00h

Joelma Maria de Lurdes, dezoito anos, cinqüenta quilos muito bem distribuídos em um metro e sessenta e oito de altura, morena clara, olhos azuis, longos cachos negros que vão até a fina cintura que juntamente com a bunda perfeita e as pernas bem torneadas provam a existência de um Deus perfeccionista ou mesmo deu um diabo de muito bom gosto. Levanta, pois batem em sua porta entusiasticamente. Ainda tonta com os olhos entre abertos tropeçando em roupas jogadas e garrafas de cerveja espalhadas pelo chão, provas cabais da noite anterior quando recebeu dois garotos de no máximo dezessete anos para iniciá-los como homens. Normalmente levava seus clientes para casa assim economizava o dinheiro do motel. Na verdade não gostava de sair com garotos, tinham muita energia e gostavam de gastá-la ao máximo, preferia os homens mais velhos que mal davam uma e logo voltavam para os braços de suas esposas. Mas como os tempos andam difíceis não estava podendo descartar nada então acabou fazendo uma exceção. Com dificuldade caminha até a porta.
- Quem é?
- É a Zélia, Jô.
Dona Zélia é a vizinha que ajudou Joelma quando aos quinze anos foi expulsa de casa pelo pai alcoólatra por estar grávida de Mateus, agora com três anos, e também era quem cuidava do menino enquanto Joelma trabalhava nas frias noites Curitibanas.
- Olá dona Zélia.
A senhora robusta de fartos seios e bochechas rosadas sempre que via aquela menina tão bela, lembrava de sua própria juventude e sabia exatamente o caminho que ela traçaria.
- Desculpe vir tão cedo, mas o menino não esta bem. Teve febre e tossiu a noite inteira.
- É o clima dona Zélia e para ajudar ainda tem essa maldita bronquite.
- É bronquite minha filha? Um sobrinho do concunhado da irmã de minha amiga Creuza tinha bronquite, ela fez uma simpatia e nunca mais voltou a incomodar. Vou falar com ela para saber como é que se faz e quais são os ingredientes necessários.
- Obrigada dona Zélia, mas tenho consulta para ele hoje às duas horas. Obrigada mesmo assim.

09:00h

Joelma após medicar Mateus vai arrumar a casa, lavar a louça que se acumulava na pia há dias e colocar a imensa montanha de roupa suja na máquina de lavar de segunda mão que ganhou de dona Zélia. Conserta o chuveiro que não esquentava, faz almoço para Mateus e separa as contas mais importantes a serem pagas.

11:33h

Toca o telefone:
- Alô?
- Dona Joelma Maria de Lourdes?
- Sim, quem é?
- Aqui é Celso da assessoria de cobrança Bom Nome, a senhora como já foi informada através de carta e vários telefonemas anteriores, está com seis parcelas atrasadas das compras que fez no Mercado Ceara.
- Eu sei, foram fraudas e comida, mas não poderei pagar este mês. Podemos renegociar para o mês que vem?
- Não vai dar mais não! Eu estou sendo cobrado pelo meu supervisor, a senhora vai ter que pagar.
- Agora não vai dar. O aluguel subiu, a água também, a clientela diminuiu muito, não estou conseguindo nem comprar o básico.
- Desculpe, mas o problema é seu, se não poderia pagar não deveria ter comprado. Agora se vira.
- Mas o que é que você quer que eu faça? Eu trabalho a madrugada inteira agüentando todo tipo e ainda assim não tenho dinheiro.
O rapaz intrigado:
- A madrugada inteira? Na sua ficha consta que a senhora é diarista.
- É que a menina que preencheu a ficha ficou com vergonha de colocar puta.
Apesar de ter ouvido direito o rapaz não queria acreditar.
- Desculpe, o quê?
- Puta, prostituta, vagabunda, piranha, “vagaba” ou como você achar melhor chamar.
- Você é Puta?
- Assim como Maria Madalena.
- E ainda assim não tem dinheiro?
- É para você ver como as coisas estão. Mas venha cá, não tem como agente dar um “jeitinho”?
- Como assim?
- Você sabe, um programa pelo que eu devo, uma permuta.
- A sua dívida aqui é de cem reais?
- Eu não faço programa por menos de cento e cinqüenta. Garanto que você não vai se arrepender.
- Hum! Está bom. Como a gente faz?
- Encontre-me hoje na esquina da rua XV com a Voluntários da Pátria as onze e meia, esta bem?
- Como eu vou lhe reconhecer?
- Estarei vestindo uma mini saia preta com um top branco e com os cabelos presos por uma fita vermelha.
- Ok, tchau.
- Tchau.
Houve Mateus chorar. Ao pegá-lo no colo percebe que esta fabril. Procura na gaveta por um termômetro, mas não encontra. Corre até a casa de dona Zélia em busca de ajuda e como sempre acontecia é prontamente atendida pela bondosa vizinha.

14:10h

Joelma chega ao consultório médico para consulta de Mateus depois de duas horas pulando de ônibus em ônibus.
- Olá, eu vim para consulta com o doutor Mário Klamp, pediatra.
- Joelma? Consulta das duas?
- Isso, é que eu me atrasei um pouco por causa do ônibus.
- O doutor não pode esperar e foi embora, você terá que remarcar a consulta.
- Mas eu estou apenas dez minutos atrasa, ele já foi embora?
- Sinto muito. Ele é uma pessoa muito ocupada. Ele não pode ficar a disposição de qualquer um. Quer remarcar?
- E tem outro jeito?
- Não. Temos um horário para daqui duas semanas e só.
- Duas semanas? Tudo isso? Mas o garoto esta mal, tosse a noite toda não consegue respirar eu não posso esperar duas semanas.
- Procura um postinho de saúde!
- Mas eu já o trouxe aqui por que ele esta mal!
- O que ele tem?
- Não sei, acho que é Bronquite.
- Faremos assim, eu irei remarcar a consulta e hoje fazemos uma inalação nele. Darei também um remédio que o doutor sempre receita nesses casos.
- Será que não vai fazer mal?
- Que nada. É o que ele sempre recomenda. Aceita ou não?
- Que jeito.

15:55h

Mais uma viaje dentro de ônibus e chega a casa de sua mãe para que ela cuide de Mateus, pois como o menino esta doente não queria incomodar dona Zélia.
- Olá! Alguém em casa?
- Aqui no quarto.
- Oi mãe, esta sozinha? Cadê o imprestável?
- Não fale assim do seu pai menina.
- Mas é verdade ou ele já arranjou emprego? Aposto que está no bar bebendo.
- Deixa ele. Como esta meu menino?
- Não esta muito bem. Eu queria ver se a senhora fica com ele essa noite?
- Claro filha.
- Obrigada mãe. Eu tenho que ir. Quero ver se passo ainda na casa da Noeli para emprestar um “topzinho” branco que ela tem.
- Filha sai dessa vida menina, você é tão bonita, inteligente.
- Ainda não dá mãe, mas prometo que até o final do ano eu largo. Um beijo, tchau.
- Se cuida em minha filha e vê se usa camisinha! Olha a Aids. Você tem filho pequeno para cuidar.
- Claro mãe, comigo só encapado.

17:23h

Após uma breve visita a amiga, já no bairro em que mora começa a via sacra. Com o dinheiro que ganhou dos garotos na noite anterior paga a mercearia, a farmácia, o açougue e fica com cinqüenta reais para alguma emergência, pois quem trabalha na noite sempre tem que ter algum para dar a polícia em caso de batida ou qualquer outra eventualidade.


18:47h

Já em casa lembra que não comeu nada ainda desde que levantou e resolve fazer um lanche antes de ir para o curso de computação na igreja, que é mantido com doações da comunidade, pois estava decidida a largar a vida.

22:30h

Após o curso volta apressada, toma um banho rápido e se arruma para exercer a profissão mais velha do mundo.

23:49h

Assim como tinha sido todo aquele mês o movimento estava muito fraco, apenas alguns moleques procurando diversão e de vez em quando um ou outro “viado” procurando por um “miche”. Espera mais algum tempo e vê um senhor de uns cinqüenta anos se aproximar. É um homem calvo com uma protuberante barriga de chope sobe a camisa branca aberta até o meio do peito, calça marrom, grandes óculos negros escondendo as olheiras, barba por fazer e um cheiro de suor e perfume barato misturado a um forte hálito de conhaque.
- Você que é a Joelma?
- Sim. Celso?
- Eu mesmo, o acordo esta em pé.
- Claro, você esta de carro?
- Não, mas um amigo emprestou o apartamento aqui perto no edifício Asa.

0:03h

Após caminharem mudos chegam ao apartamento. Era um lugar feio, pequeno com uma minúscula sala logo ao se entrar, com um sofá velho que servia de divisa com a cozinha onde se via sobre a pia encardida algumas garrafas vazias entre copos e panelas com resto de comida dentro, na frente via-se duas portas que eram o banheiro e o quarto respectivamente.
- Sente-se.
- Não, vou até o banheiro e já volto, onde fica?
- É aquela porta a direita.
Ao se aproximar da porta do banheiro ouve risadas vindo lá de dentro. Olha espantada para Celso, mas antes que pudesse falar alguma coisa saem dois rapazes bem mais novos que ele e visivelmente embriagados.
- O que esta acontecendo. Quem são esses dois?
- Eles vão dividir a conta comigo então também tem seus direitos e vai calando a boca e tirando a roupa.
- Que tirar a roupa, eu vou é embora!
Ela caminha em direção a porta, mas antes de alcançá-la Celso coloca-se em sua frente bloqueando a passagem. Com a malícia de quem vive na noite e já passou por isso antes, dá um chute nos testículos da grotesca figura em sua frente e corre. Os rapazes que assistiam a tudo não se agüentavam de tanto rir vendo Celso todo torcido no chão. Joelma agarra a maçaneta, mas a porta esta trancada. O homem levanta-se ainda meio curvado e com um violento tapa joga Joelma do outro lado da sala. Ela tenta se levantar, mas Celso agora irado desfere outro violento soco em seu rosto que faz jorrar muito sangue de seu nariz agora quebrado.
- Essas vagabundas pensam que são gente! Estamos fazendo um favor pra essa cadela e é assim que ela retribui. Se é disso que você gosta vadia, apanhar, é o que você vai ter.

5:37h

Joelma da entrada na emergência do hospital Cajuru inconsciente levada por um taxista que a viu deitada seminua próximo ao módulo policial abandonado da praça Ozório toda ensangüentada com o olho esquerdo praticamente fechado de tão inchado, o nariz quebrado, vários hematomas pelo corpo todo e um profundo corte na cabeça.

8:00h

Horário do óbito de Joelma Maria de Lourdes, dezoito anos, mãe, que preferiu a vida fácil das meretrizes as dificuldades da vida de uma mulher honesta.
Genuíno Brasileiro da Silva

Quatro horas e vinte minutos, mais uma madrugada na vida de Cleverson da Silva, dezessete anos, auxiliar de pedreiro, analfabeto e como todo bom brasileiro anêmico.
Levanta com todo cuidado do mundo para não acordar seus pais e seis irmãos que dormem, assim como ele, amontoados no canto do barraco de duas peças em que vivem, ou melhor, sobrevivem.
Veste roupas surradas, tão castigadas como ele próprio, que ganhou de parentes ou conseguiu na paróquia próxima a favela onde mora a cerca de sessenta quilômetros do centro de Curitiba a “cidade da gente”.
Coloca dentro de uma lata vazia de cera de assoalho, que utiliza como marmita, um pouco de arroz, feijão e meio ovo cozido que sua mãe preparou na noite anterior e que será a refeição de um dia inteiro.
Ainda escuro, nas frias madrugadas curitibanas, espera junto com tantos outros “da Silva” como ele o ônibus para tentar ganhar seu sofrido salário mínimo. Após duas horas pulando de ônibus em ônibus chaga ao serviço onde labuta levantando tijolos, desmanchando sacos de cimento, fazendo rebocos, durante oito horas seguidas, seis dias por semana com um único objetivo: o primeiro sábado após o quinto dia útil do mês, pois é quando acontece o bailão da Sociedade Beneficente Rosas do Barro Preto ou como é mais conhecido por seus assíduos freqüentadores “Barrão”.
Assim como quem segue um ritual, em dia de baile após o serviço vai para casa toma um banho rápido, coloca a melhor camisa que tem, veste a calça social que usa para ir a igreja, o sapato de domingo e para dar um toque final passa muito perfume de cravo da Avon presente de sua mãe que é revendedora da marca para auxiliar no orçamento doméstico.
Sai de casa às nove horas, passa no bar de seu Augusto e toma alguns “rabo de galo” para firmar o pulso e molhar as palavras o que em sua simplória concepção do universo feminino facilita no trato com as damas.
Quando sente que já está no ponto, “calibrado”, pendura a conta com seu Augusto e sai feliz em direção ao “Barrão”.
No outro extremo da cidade a cerca de cinqüenta quilômetros do centro de Curitiba, mora com seus pais e mais cinco irmãos, Anita Amália Brasileiro. Quinze anos olhos negros como jabuticabas maduras e brilhantes como a lua cheia, corpo franzino, mas com uma beleza dissimulada quase obscena. Estudou até a quarta série do primeiro grau o que significa que mal sabe assinar o próprio nome. Trabalha em uma loja popular nas proximidades do terminal de ônibus metropolitano o terminal Guadalupe. Emprego esse conseguido em troca do silêncio devido ao aborto que sua irmã mais velha fez do filho que esperava do turco Riad, dono da loja onde trabalhava.
Por influência de suas irmãs assim como da maioria das meninas que vivem próximas ao barraco onde mora, também é freqüentadora do “Barrão” onde entra mentindo a idade. Talvez por obra do destino ou da matemática afinal menos com menos da mais, conhece Cleverson por quem se apaixona.
Assim como seguindo uma profecia ou regulamento, a vida segue seu rumo. Após seis meses de namoro Anita engravida e Cleverson que é pobre, mas rapaz direito, como manda a etiqueta propõe casamento o que é prontamente aceito pela moça, afinal a esperança é a última que morre e bem ou mal é uma maneira de tentar passar menos fome, serão apenas três bocas para comer.
Juntando o pouco que ela ganha com a miséria que ele ganha constroem um barraco e vão morar juntos em uma invasão na região metropolitana cerca de setenta quilômetros de Curitiba. Talvez por milagre, teimosia ou mesmo uma brincadeira sádica da vida nasce mais um brasileiro que recebe quase que poeticamente o nome: Genuíno, por parte da mãe Brasileiro e por parte do pai da Silva.
Cotidiano

Levanta, abre os olhos, caminha até o banheiro ainda sonolento perguntando-se:
- O que é que estou fazendo em pé a esta hora?
Lava o rosto tentando apagar os traços da noite mal dormida devido ao colchão velho que deixa marcas ainda invisíveis em seu jovem corpo, dezessete anos, que na velhice cobrarão seu quinhão. Houve sua mãe, trina e seis anos, gritar da cozinha:
- Vai se atrasar moleque. Anda logo! Se não, vai perder o emprego por preguiça. A situação não esta fácil!
Já refeito, cabelo penteado, muito perfume passado da um beijo em sua mãe, come meio pão tão adormecido quanto ele e caminha apressado para pegar o ônibus lotado de sempre. Já em meio a tantas outras pessoas assim como ele tão desanimado e sem muita perspectiva de vida, segue para a fábrica. Lá chegando troca de roupa, bate o cartão, faz alguns comentários sobre a campanha de seu time de futebol e logo está lidando com a máquina que não pode parar.
Tira peça, coloca peça, tira peça, coloca peça...
Após cinco horas de labuta ouve a sirene, que significa liberdade, e caminha apressado para o refeitório junto com alguns colegas de profissão. Fica durante alguns minutos na fila carregando seu bandejão com muito arroz, feijão, batata e como sempre chorando um pedaço maior de carne pois fora do trabalho nem sempre é possível comê-la.
Quarenta minutos depois retorna para sua fiel companheira, a máquina que não pode parar, para mais quatro horas de trabalho repetitivo e angustiante. Para tentar amenizar o marasmo e a falta de perspectiva cria fantasias sobre um futuro pródigo onde conseguiria se formar em engenharia mecatrônica, construir sua casinha e após oito anos de noivado casar com Claudete, dezesseis anos, e ter dois filhos, um menino e uma menina.
Finalmente a sirene novamente anunciando a liberdade. Corre para o vestiário troca de roupa e segue novamente para o ônibus não menos lotado.
Chega em casa cansado e vai ajudar seu pai, quarenta anos, a terminar o “puxadinho” que fazem nos fundos do terreno para que seu irmão mais novo, quinze anos, possa morar com a namorada, treze anos, grávida.
Levanta, abre os olhos, caminha até...
Amor Maiúsculo

Por favor, não diga nada. Hoje peço que você apenas me escute.
“Quem consegue dizer o quanto ama, ama pouco”.
Eu tinha dezesseis anos a primeira vez que li esta frase e foi necessário se passar mais quinze para que eu a compreendesse.
Hoje, realmente, admito que apenas com palavras é praticamente impossível descrever o que sinto por você. Vai além de minha compreensão. E com este meu jeito fechado, tímido, capiau mesmo, tenho medo de não estar conseguindo me expressar.
É um sentimento literalmente grande e por mais que procure alguma palavra que consiga expressar um décimo do que sinto, a única que vem em minha mente, recorrentemente, por mais banalizada que ela esteja, é:
Eu te AMO!
Como nunca antes pude acreditar AMAR alguém assim. Com cada molécula de meu ser, eu sei que te AMO!
O AMOR aconteceu para mim como deve ser, a primeira vista.
Lembro e agradeço todos os dias a Deus o mágico instante em que nossos olhares se cruzaram. Naquele breve momento, que para mim pareceu durar horas, eu sabia que fomos feitos um para o outro. Minha lógica dizia que eu nunca havia visto você antes, mas meu coração insistia em dizer que apenas estávamos nos reencontrando. Talvez por isso a única coisa que consegui dizer foi: - Oi! – e sorrir, um sorriso puro e sincero.
Com o passar do tempo, enquanto fomos nos descobrindo, esta certeza só aumentou. Assim como a certeza na reencarnação, nas vidas passadas, pois como de outra maneira tanto AMOR caberia em apenas uma breve existência. Hoje sei que te AMEI ontem, te AMO hoje e AMAREI amanhã. AMO lembrar do nosso primeiro beijo, e confesso que para mim aquele foi o primeiro, pois todos os anteriores simplesmente não existiram, não significaram absolutamente nada. Quando tive você pela primeira vez em meus braços e pude beijar seus lábios, sabia que seriam os últimos que eu beijaria.
AMO o fato de que estar perto de você faz com que eu queira ser uma pessoa melhor, mais educada, mais cordial com os outros, com mais animo e afinco de buscar meus objetivos para progredir na vida.
AMO andar de mãos dadas com você por saber que posso beijá-la a hora que eu quiser e que para tanto basta apenas puxá-la para perto de mim.
AMO que ao lembrar de você minha vida se enche de poesia, de que o AMOR é infinito, mas cabe no breve espaço de um beijo e de que se o AMOR é troca ou entrega louca, discutem os sábios, entre os pequenos e os grandes lábios.
AMO a paz de espírito e a tranqüilidade que você me passa. Você me acalma!
AMO o cotidiano ao seu lado, as pequeninas coisas do dia-a-dia que enriquecem minha vida.
AMO quando toca nossa música, que realmente é poesia em movimento, e você me olha e sorrindo, me estende a mão para podermos dançar, esteja onde estivermos.
AMO até mesmo nossas brigas só por saber que depois faremos as pazes com longos e apaixonados beijos.
AMO fazer AMOR com você, quando a tenho em seu estado mais belo, o natural, sem artifícios, quando somos somente você e eu. Sentir sua pele na minha, seu perfume, sua respiração ofegante, quando quase beiramos a loucura para logo em seguida encontrarmos a paz.
AMO acordar antes que você para poder ficar velando seu sono e quando você acorda ver seus lindos olhos brilharem e aquele sorriso que enche minha alma de alegria.
Mas tenho que confessar que muitas vezes sinto-me egoísta por AMAR tanto assim, pois este AMOR só me faz bem. E não me compreenda mal. Apenas estou abrindo meu coração, contando o que me vai na alma. Não ache que por isso você tem alguma responsabilidade ou obrigação a meu respeito. Há muito compreendi que um AMOR tão belo assim não pode ser egoísta ou possessivo. E que ele realmente seja eterno em quanto dure. E que se você esta ao meu lado é porque você quer e porque este AMOR te faz tão bem quanto a mim.
Você deve estar se perguntado do porque de tudo isto agora.
Simples! Eu não agüentava mais guardar tudo isto dentro de mim. Eu estava praticamente sufocando. Quase explodindo a sua espera.
Então seja você quem for, esteja a onde estiver, é isto que eu tenho a lhe dizer. E sei que um dia, e este dia vai chegar, quando eu lhe encontrar talvez eu crie coragem e lhe diga tudo isso pessoalmente.
Brasilidade

O dicionário Aurélio define assim: sf. Sentimento de amor ao Brasil.
Mas não é amor que sinto ao Brasil é outro sentimento que não sei o nome. É uma mistura de indignação, resignação e frustração. Impotência com raiva e medo. Talvez impunidade pudesse descrever o que sinto. Não, ainda é pouco para estabelecer uma nomenclatura para este, até então indefinido, mas sempre presente sentimento. Nascido, criado e cultivado em nosso país abençoado por Deus e bonito por natureza.
Sei com toda certeza do mundo que este sentimento está lá. Ou melhor, sempre esteve. Todos os dias, semanas, meses, anos. Lá! Basta ligar a televisão, rádio, jornal ou mesmo em uma conversa despreocupada com amigos no boteco da esquina. Para mim não seria diferente. Passaria a vida toda, tranqüilo, sem nunca me preocupar com ele e assim como todos seguiria feliz. Mas infelizmente ou felizmente, não sei, uma noite estava assistindo televisão e vejo uma reportagem. Mostrava a historia de uma menina pobre que havia recebido o transplante de rim de sua mãe o que faria com que ela não necessitasse mais da sofrível hemodiálise. O problema é que os remédios que a menina deveria tomar para evitar a rejeição do transplante não estavam disponíveis na farmácia do estado. Como estes remédios são extremamente caros e a menina não tinha condições de comprá-los, ela ficou quinze dias sem tomá-los. O que ocasionou a perda do rim transplantado. Durante a reportagem ficou explicado que o medicamento estava em falta porque o governo não repassou a verba para os laboratórios que forneciam o remédio, mas que o problema já havia sido resolvido. Nada de mais. Apenas mais uma reportagem cotidiana de nosso país.
Mas aquele dia alguma coisa estava diferente. Os astros alinhados corretamente, ou era lua cheia, ou a cueca estava muito apertada, não sei. Aquele dia tive um estalo.
Ver a mãe da menina, a doadora do rim, que apenas chorava, não pelo descaso das autoridades ou por não ter mais um rim e passar o resto de vida com várias restrições, mas por saber que a filha teria que voltar a fazer hemodiálise e sofrer, aquilo mexeu comigo.
Foi só então vendo aquela senhora chorar, que pela primeira vez em minha vida percebi a presença do tal sentimento. Foi no olhar daquela senhora que notei a mistura de indignação com raiva, medo e frustração que eu sentia. Sem contar a resignação dela por saber que nada, absolutamente nada seria feito. Isto me deu a certeza de que este indefinido sentimento não é exclusivamente meu. Agora compreendo que a maioria das pessoas, assim como eu, simplesmente não se dão conta dele. Ou já estão tão habituados que não ligam mais. Assim como a violência ou a corrupção ele também se tornou parte do nosso cotidiano. Foi banalizado.
Compreendi os políticos de nosso país. Afinal eles também sentem o tal sentimento só que não sabem. Assim como nós não ligamos, simplesmente não nos importamos com este sentimento, eles também não.
Percebi aquilo que eles, os políticos, já sabiam a muito tempo. Que realmente somos as ovelhas do Pai. O rebanho de Deus. Somos mansos. Aceitamos tudo de todos, sempre. Não porque queremos, mas porque não nos importamos, estamos habituados e só. José Saramago já dizia: É desta massa que somos feitos. Metade maldade, metade indiferença.
E é verdade. Assim como todos os brasileiros vejo o jornal fico com raiva, indignado, revoltado e nada! Desligo a televisão volto para minha vidinha e tudo segue normalmente até a próxima reportagem quando novamente ficarei indignado e blá , blá, blá.
É este sentimento que me dá a certeza de que todos, absolutamente todos, os políticos antes de dormir rezam fervorosamente agradecendo a deus pela mansidão do povo brasileiro.
Então fico pensando o que devo fazer?
Simples, devo parar de culpar os outros e assumir minha parcela de culpa. Assim como todo brasileiro deveria fazer. O Brasil é esta merda por culpa exclusiva do povo brasileiro. Não adianta criticar o governo que não faz nada além de desviar verbas, superfaturar obras, vender votos e fazer conchavos para aumentar os lucros de bancos e multinacionais. Vivemos em uma democracia, que excetuando todas as outras formas de governo é a pior. Fomos nós que os colocamos lá.
Somos eleitores ignorantes, despreocupados, descomprometidos e corruptos que exigem representantes sérios e comprometidos. Devemos assumir de uma vez por todas que o que nos incomoda na corrupção não é que ela existe, mas o fato de não tirarmos o nosso quinhão dela. Vivemos tempos tão conturbados que conseguimos transformar esperança em vergonha.
Agora sei como chamar esta mistura de indignação, resignação, frustração, impotência, raiva, medo e culpa. Chama-se BRASILIDADE.
João? José?

O telefone toca.
- Alô?
- Quem fala?
- Com quem você quer falar?
- João.
- É ele, quem fala?
- O João é o José!
- Fala Zé! Quanto tempo rapaz!
- Pois então João faz o que, uns cinco anos que a gente não se fala “home”.
- Deve ser! Mas e aí como vai a vida, a mulher os filhos?
- Hiii! Nem te conto João. Lembrei de você e te liguei porque estou precisando desabafar com um amigo de verdade.
- Pode falar, amigo é para estas coisas mesmo.
- Descobri que minha mulher tava colocando chifre na minha cabeça, João.
- Shiii!
- Pois é. Eu me matando de trabalhar para pagar todos os caprichos da vaca e ela saindo com um guri de vinte anos.
- Essa mulherada não presta mesmo Zé. Mas como você descobriu?
- Coloquei um detetive atrás da safada e descobri. Veio com foto, vídeo e o diabo a quatro, rapaz. O pior é que me custou o olho da cara!
- E a safada o que disse?
- Disse que a culpa era minha, que eu não dava a atenção que ela precisava, e coisa e tal...
- É essa maldita televisão Zé. Essa mulherada fica vendo novela o dia inteiro e acha que pode tudo. Querem trabalhar fora, ter carreira, sair para beber com os amigos. Os bons tempos acabaram, amigo! Agora até na hora de transar agente tem que dar atenção para as preliminares, elas querem até gozar! Vê se tem cabimento!
- É verdade, é o fim dos tempos. Mas isso não é tudo. Na mesma época me estoura as hemorróidas. Fiquei com o rabo que era uma couve-flor. Tive que operar e tudo.
- Nossa colega a maré não boa para o teu lado. Mas não te apoquente. Para mim também não esta sendo fácil.
- O que aconteceu? Pode falar amigo.
- Minha filha mais nova, a de quinze anos, ta grávida!
- Não diga rapaz! E o pai da criança?
- Esse é o problema! A cadelinha disse que “ficou” com um menino numa festa em um dia, com outro no outro dia, saiu com mais não sem quem, e não sabe quem é o pai. Disse que não quer ser injusta acusando ninguém. E que depois que nascer é só fazer o teste DNA.
- ...
- É eu também fiquei sem palavras amigo. Mas a culpa é da vaca da minha ex-mulher. Aquela cadela não educa a menina. Vem com aquele papo furado de pedagogia, psicologia infantil e o diabo. No nosso tempo era a psicologia da vara de marmelo nas pernas.
- O fim dos tempos realmente, amigo. Mas chega de coisas ruins. Como foi que você conseguiu meu telefone?
- Eu estava na fila do banco para pagar umas contas, sempre para pagar nunca para retirar dinheiro, e vi seu pai. Foi ele que me passou seu telefone. Ta forte o velho em João!
- O Zé, não brinca com essas coisas não rapaz. Você sabe muito bem que meu pai morreu faz cinco anos. Se não me engano foi no enterro dele a última vez que agente se viu.
- Que é isso João? Tá maluco?
- Eu é que te pergunto?
- Pêra aí? Aí 3023-1320?
- Não! 3032-1320.
- Não é o João Agripino?
- Não! João do Carmo.
- Desculpe, foi engano!
Obrigado

Obrigado, Senhor
por eu ter nascido.

Obrigado a nascer em um país
em que o ser humano não tem valor.

Obrigado, Senhor
por mais um dia vivido.

Obrigado a viver
abaixo da linha da miséria.

Obrigado, Senhor
por minha saúde.

Obrigado a não ter
assistência médica descente.

Obrigado, Senhor
pelo fato de eu viver em um país livre.

Obrigado a votar
em um regime supostamente democrático.

Obrigado, Senhor
por não termos guerras.

Obrigado a se alistar
nas forças armadas.

Obrigado, Senhor
por eu ser fisicamente perfeito.

Obrigado a ser
bonito, magro e inteligente.

Obrigado, Senhor
por eu ter tido a possibilidade de estudar.

Obrigado a suportar
um ensino medíocre e desestimulante.

Obrigado, Senhor
por buscar sempre ser justo.

Obrigado a ver a justiça
condenar os pobres e absolver os poderosos.

Obrigado, Senhor
por saber perdoar as ofensas.

Obrigado a suportar
e engolir desaforos para manter um emprego de fome.

Obrigado, Senhor
por eu poder protestar

Obrigado a protestar
pela incompetência e desinteresse dos governantes
Calamário
O poeminha temerário

Não faço a mínima idéia do que significa esta palavra ponto
Ela simplesmente surgiu vírgula
Apareceu do nada ponto
O pior é que veio acompanhada deste poeminha dois pontos

Abre aspas
Cidade pequena
Padre novo
Menina virgem
Filho lobisomem
Fecha aspas

Talvez seja falta do que fazer ponto
Com certeza alguém já deve ter dito dois pontos
Não existe nada mais assustador do que uma folha em branco ponto
E é verdade ponto de exclamação
Definitivamente foi isto e pronto ponto
Olhei para a folha em branco fiquei apavorado vírgula
E do meu medo surgiu esta palavra dois pontos
Calamário ponto de exclamação
Mas e o poeminha vírgula de onde veio ponto de interrogação